quinta-feira, agosto 20, 2009

A obra aberta: nova escola literária

A obra aberta: nova escola literária

ou O código estético da iconoclastia

Mário Jorge Bechepeche *

Assim, pelo título acima, se pode inferir um dos suportes temáticos, dos muitos que são comuns e determinantes na obra geral de Brasigóis Felício, desde o início de sua prosa e verso. A fim de que não se estenda além de uma crítica simétrica (hoje, ele faz parte dos que merecem análise desdobrada, como já feito a Miguel Jorge, Gilberto Mendonça Teles, Gabriel Nascente, etc, por outros críticos) o enfileiramento das características de sua criação literária se fará pelo ponto de vista de suportes estéticos, situando-se, portanto, fora do tempo e da cronologia, irrefutáveis e indiferentes a quaisquer filosofias.

Como apontado no título, o pique ostentórico da vespa farpejante e demolidor obstinado e revel dardeja tanto em Literatura Contemporânea em Goiás (1975), crítica literária de arestas incandescentes, como em Zumbi Incendiado , poema de gullarismo político-social, bem como em A marca de Caim (1984), ficção em fúria iconoclasta e arroubos de furacão. Escorrem-lhe das páginas o idealismo quixotesco que expele lavas vulcânicas calcinadoras e impenitentes, querendo, como soe na idade, ainda de pureza das ideologias humanitárias, arrostar o caos e as tempestades vigentes, que supliciam e escravizam.

De passagem, a utilização de novos recursos literários, que seriam ser os novos filetes da chamada Obra Aberta, já neste livro é uma ampla bagagem de vertentes, em inesgotável corolário ali constante: realismo literário, intertextuação, arrepanhamento (que ele depois fez como uma das marcas características de suas crônicas), miscelânia de gêneros, etc. Quem quiser esclarecimentos sobre estas características de que se constitui a Obra Aberta, que o mundo inteiro hoje usa como verdadeira escola literária, telefone para 3281-13-91.

Aliás, dos seus contemporâneos, ele é o que porta a maior gama dessas características em conjunto, ainda nas décadas de 1970 e 1980, uma vez que apenas alguns autores incursionavam na modernidade abertista que Umberto Eco vinha pregando desde a década de cinqüenta. Entre estes, por exemplo: 1. José Mendonça Teles Contítulos, 1972 (conto feito pela combinação de títulos de contos, ou conto bibliográfico, um farto exemplo de intertextuação, e Via sacra, 1978, em que se mostrava, além da diagramação visual concretista na prosa, realismo fantástico que seria não só em Goiás, mas em todo o Brasil, o ópio das gerações da década de 1990.

  1. Miguel Jorge (tanto que se tem a dizer!), em “Amor: poldro que se doma, fogo de outra chama – (1996) expõe, à larga mano, uma extensa intertextuação, usando poesia no teatro e em Avarmas (1980), além do realismo fantástico, inclui a septação dos contos com subtítulos, interiorização e velamento expressional de Kafka e formatações textos à Joyce. 3. Maria Helena Chein – com testemunho do prefácio de Nelly Alves de Almeida, introduz a “corrente de pensamento”, modificada (os modelos clássicos eram Proust, Catherine Mansfield, Virgínica Wolf, Breno Accioly, Clarice Lispector, Elisa Lispector, etc), com Do olhar e do querer, enquanto que Atiço Vilas-Boas da Mota, prefaciando, assinala em Joana e os três pecados, características do contrapondo de Maria Helena Chein. O contraponto clássico tem história que remonta a Petrônio (Satiricom) e foi introduzido no Brasil por Érico Veríssimo.

4. Alaor Barbosa – que se revelaria um magistral conciliador de temáticas, com soberbo panorama de seres e coisas, ora sertanista, ora urbano, em Rios da coragem, sensacionalmente capaz de nos remeter, ao mesmo tempo, ao visual nitente de Monteiro Lobato ou ao intimismo cogitante de um Machado de Assis – em livros anteriores já colocara dois aspectos da Obra Aberta: o balzaquismo e a autopersonagem.

5. Jesus de Aquino Jayme – com Viagem das chuvas (1972) trouxe, aliás um dos mais difíceis caracteres da Obra Aberta, a Criptografia, que estabeleceu na linguagem novelada de Saramago, o suporte magistral de Levantado do chão. 5. Antônio José de Moura – (estudos especiais) com Notícias da terra (1978) de recorte ritualístico nos contos – mostra a técnica operativa, além de criptografia, intertextualização.

Esta resenha, muito sintética, visa apenas lembrar que Brasigóis Felício, mesmo naqueles anos de 70 e 80, praticamente usou de todos aqueles recursos mencionados de um (1) a seis(6), parcialmente usados ainda pelos seus coevos, só não utilizando outro recurso indicador – o praxismo, que Heleno Godoy, Luís Araújo, Carlos Fernando Magalhães, Carlos Rodrigues Brandão (só interessam os de Goiás) instauraram aqui e produziram, sob a égide das conquistas lingüísticas que são 100% a base praxista, - páginas de excepcional relevância no contexto nacional.

Desde modo, o universo criador de Brasigóis Felício, realmente por ser crítico literário (como Gilberto Mendonça Teles0 e autor de poesia e ficção (prosa), abria-se em perspectivas inumeráveis. Desde Monólogos da angústia (1975) a visão existencialista de um mundo desumano e de feroz cariátide de hiena até a última gota de sangue, fazia arder nele uma linguagem de nuances diversificadas em estilização, dependendo da temática de enfoque: urbano, pessoal ou rural, mas sempre pontificando a impressão de que em seus textos, em vez de palavras, aflora um desfile de ossuários funâmbulos e convulsos.

Esta mundividência já era vazada no virtuosismo de mananciais que iriam fazer a Obra Aberta (nos itens já mencionados e em outros), como o cânone exponencial do “nouveau romam” – o corte brusco na linearidade, pelo estratagema de deixar ao leitor a complementação do ciclo normal do conto tradicional, seja em qualquer de sua fase, ora sem início ou meio, ora sem fim. Em contos como “No outro dia”, “Já vou, já vou, ser cedo” e em “O senhor compreende?”, ele já o começa pelo fim. Em “Insônia”, é surrealista. Neste incrível “Você não está com câncer, está?”, o autor malbarata a ordem de tal maneira que desfila as frases em torvelinho, dando a impressão que o início, meio, fim, vêm todos de uma vez, como numa rodopiante piorra mágica...

Mas, há mais: usa o contraponto no sentido convencional – o de Aldous Huxley e Érico Veríssimo – em “Cantiga de roda” e, ao mesmo tempo, estruturalmente calcado no abertismo, faz arrepanhamento, como em suas crônicas. Em relação ao proselitismo, sabe-se que na influência de mestres como modelo para outros poetas é um fato aberrantemente iluminista, inegável em todos os versejadores de todas as épocas do mundo, desde Homero. Em Brasigóis Felício se palmilham dicção entre Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto; retratação de temas à la oralidade de Bernardo Elis.

Pela lógica esperada de seu sentimento antiburguês de desmistificação não se conduziu ao estruturalismo formal, paroxístico, tendo conservado o discursivo, o verso curto com resolução de uma busca de sintetismo latinista (por exemplo, empregando “doendo” ao invés de “fazer doer”, porquanto ali “doendo” não é gerúndio). Este senso de latinização da frase gera conotação estética que diríamos o poeta passar as altas horas da noite pincelando os seus versos, e à medida que mais amadurece, em publicações posteriores, veste o poema de um péplum vestal de linguagem personalizada nos rescaldos das sondagens introspectivas, com mais compactação e densidade no bojo.

Não recusou as ofertas da Obra Aberta em seus poemas, como já havia estampado em sua prosa. Também desfilam: realismo fantástico “Zaratustra, sangrando com Beethoven”, “A surdez do silêncio”, etc, bem como o autobiografismo, autopersonagem, ficção do real, intertextuação (aliás, até auto-intertextuação), atemporalidade pelo hermetismo, como no poema “Germinação geral”. Captam-se, ainda, bafejos e responsos do açulamento da geração de 45. Em síntese: seguramente podemos ter, pelo menos, quarenta poemas (tenho-lhes os títulos) compondo uma excelente antologia, mas não compulsei todos os seus livros de poesia. Mas já sabemos: o panorama da literatura não pode prescindir de Brasigóis Felício – entre nós e no Brasil.

* Mário Jorge Bechepeche é médico

e crítico literário.