Deve ser descartada a sintaxe que
ordena o material para que pensamento consiga interpretar numa percepção
ligeira, mas exigidas intervenções que venham inserir outras linhagens de
compreensão, onde a visibilidade não ocorra em fórmulas e recortes uniformes. É
confortável eleger uma ordem e depois se sujeitar a ela e a ela se habituar,
vindo a desaguar na desistência de buscas de novos ângulos de visibilidade. Só
as novas visibilidades permitem novos trânsitos e novos textos.
Dheyne de Souza denuncia: “a
ponte cega o verbo”, pois a ponte não estimula outras passagens, sujeitando o
passageiro às mesmas paisagens e aos mesmos territórios. Dentro de uma zona de
domínio, de conforto, deixa de ser discernível a individuação. Quando todos
mantêm o mesmo ritmo, num mesmo propósito, num mesmo discurso, encontramo-nos
num enxame, num formigueiro ou numa multidão. O enxame – define Byung-Chul Han
– conforma-se com o mesmo resultado.
A ordem é traiçoeira, se o seu
desejo impõe a repetição para retomar o espasmo já experimentado. Quando se
aprende a curva, reproduz-se a curva. Quando se encontra a forma de
sustentação, cria-se o molde da trave. É necessário destravar − e isso só pode ser
obtido com a partição do puzzle para abrir possibilidades de outras montagens
do discurso e de outros encaixes na interpretação. Até na imprensa o conforto
passou a ser buscado em sua prática − otimiza-se a multiplicação do discurso a
partir da cópia da postagem inicial. É mais confortável, econômico e sem risco
trabalhar com o que já está pronto, posto e acolhido. Vamos perdendo para o
lixo raras possibilidades que os materiais contêm. Todo sacrário tem sua chave
e determina que não será aberta admissão a nenhuma outra divindade.
Não quero meu pensamento numa
divinização monoteísta e uniformista. Prefiro admitir o pensamento propenso à
estranheza a ser máquina de portabilidade de significados exigidos em
requerimentos protocolados nos guichês do conformismo. Aproximo-me de uma
experiência para que o espasmo deixe de repetir a baba e os esgares. Atraem-me
os poetas que partem de alguma impossibilidade, que reconhecem que a composição
não surge com a dicção do prazer de dizer a confissão pessoal, mas da infiltração
de alguma incompreensão para tornar explícito que o incompreensível deve ser
abordado. Dheyne de Souza afia suas lâminas para traçar ranhuras na sintaxe
para experimentar se ainda há possibilidade de sangrar e de escapar da
subjugação dos mesmos canais de expressão.
Tive oportunidade de estar junto
com Dheyne de Souza em Goiânia por duas vezes. Participamos de debates e
leituras. Ela sempre de lenço (ou cachecol? ou numa alternância de lenço e
cachecol?) ao pescoço, construindo uma imagem muito circunspecta, com diálogos
muito cautelosos nas conversas. Eu temia que a poesia dela se enfraquecesse
nessas apresentações públicas, nas quais já era acolhida com merecido aplauso,
pois os expectadores de recitais se contentam (e até exigem) comunicação verbal
e expressão corporal e não exigência de composição que evada das facilidades do
real. No entanto, essa capacidade de construir a imagem pessoal contribuiu para
que ela não cedesse ao desbunde fácil da rua, pois usou a concentração corporal
para respeitar o poema com exigentes etiquetas muito próprias, respeitando a
construção dos poemas com policiamento e polida circunspecção.
Dheyne de Souza é uma
tocantinense que morou em Goiânia, onde participou de muitos eventos (muitos
recitais) literários, com rico material de aprendizagem de poesia em redes
sociais e sites pessoais. Depois parte para São Paulo para seu doutorado em
Literatura Brasileira. Portanto, a sua trajetória vem permitindo a ela alcançar
consciência de visibilidades de novos territórios com derrubada da cegueira
imposta pelas facilidades apresentadas pelas pontes prontas e já inflexíveis em
seus materiais.
Em Lâminas, seu segundo
livro − ricamente editado pela Martelo Casa Editorial, com design invejável de
Helô Sanvoy, e tiragem extra de 50 exemplares em edição de luxo − sobressai uma
poesia madura, onde se intercalam poemas rápidos, bem pedras portuguesas em
elaborados mosaicos, bem como poemas com estruturas mais longas, na maioria
prosoemas (seu terceiro livro, conforme anunciado pela mesma editora, composto
só de prosoemas terá o título enquanto caio). A indefinição pela escolha
de uma forma específica não chegue a ser prejudicial ao livro; talvez atenda o
interesse do expectador desse tempo atual em não se fixar num mesmo formato, de
total negação daquilo que se mostra na tela no mesmo enquadramento.
O livro já mereceu duas resenhas
(disponíveis em sítios da internet), destacando a do poeta Wilton Cardoso, que,
junto com Jamesson Buarque, integra o círculo responsável pela definição de
novos parâmetros para a poesia goiana. E nesse círculo transita Dheyne de
Souza. O importante é que o livro sobressai sobre as publicações de poesia
atuais e consolida mais uma passagem rumo à definição de uma dicção
personalíssima para a poesia de Dheyne de Souza. É um livro que chega
inquestionável, sem lacunas, mergulhando a construção dentro das ocorrências
pessoais e políticas. Também sobressai a busca de domínio da forma, ajustando a
fluidez da escritura virtual a uma sintaxe, às vezes elíptica, às vezes de
ruptura com as imposições virtuais. Alcança resultado, como já se disse,
inquestionável.
Logo no preâmbulo, Dheyne de
Souza sinaliza que não há uniformidade no real ou na prática construtiva de
seus poemas (quebrados de rua/bebidos de pressa/ladrilhos sem linha). Esses
três versos, em suas dezessete sílabas, bem se enquadram nas exigências
elípticas da poesia japonesa. Um haicai enigmático? O importante é que o poema
sinaliza a composição que será adotada no livro, bem como o terreno que irá ser
desbravado.
Há um poema que irá mostrar a
necessidade da exploração da sintaxe (da linguagem) para escapar do conforto
daquilo que se vê da ponte e do conforto do território a ser encontrado com a
travessia. A ponte impede o mergulho, o afogamento, o aproveitamento do
inconsciente, do que está no fundo de si mesmo. Na experimentação da sintaxe,
sem nenhuma expressão óbvia, não se desliga em momento algum dos efeitos
internos que indica que um poema é um poema desde que o mundo é mundo (nomeiam,
nadadeiras, seio, espreita, anseio). E, nesse embate com a validação da
sintaxe, em outro texto relembra que há, às vezes, “um verbo cansado de ar”,
pois o percurso para desbravamento de terrenos novos nem sempre ocorre com
respiração segura.
tem um lado do lago que esconde a língua
das margens que nomeiam as entranhas,
foz em que dormem os pequenos medos,
com suas nadadeiras arredias
vez ou outra atiçando um verbo
vez ou outra maldizendo um seio
à espreita-bolha de um espeto
na suspensão que é respirar escama,
em silêncio – brejo em mar,
no subterrâneo consoante
das vogais do anseio.
Quando se manipula uma lâmina, há
uma ação de estrangulamento, de sangramento, de eliminação, de possibilidade de
arranjos novos com o despojamento ou realocação de elementos. Dheyne de Souza
usa suas Lâminas para despojar. Resta à sintaxe indicar, mostrar que
o lugar comum está exaurido, pois está sendo executado pelo enxame. Ela deseja
correr fora do enxame, não atravessar a mesma trilha, mas derrubar pontes.
Poderia ter dito “lago que esconde as beiras”, o que seria o discurso
óbvio. Poderia ter construído com o enxame o verso “suspensão que é respirar amor”.
Poesia se faz com o domínio da linguagem, com martelamento dos materiais, com
fuga da significação explícita. Se uma lâmina desmonta uma árvore, resta um
monte de uma árvore ou a dispersão de uma árvore. Se uma centena de pessoas
atravessa uma rua ou se aglomera, temos uma multidão. Mas qual ordem pode ser
dada a esta multidão? A poesia tem de reunir todas as pessoas por cores de suas
roupas, ou intercala-las? A sintaxe existe para atender os questionamentos do
poeta. Uma centena de pessoas ordenadas deixa de ser uma multidão. As palavras
que atendem ao propósito do chamamento de uma sintaxe pessoal se transformam
num texto de leitura factível, em que pese a compreensão não ser factível para
todos.
Entra ainda outro questionamento
quando há ocorrência da perda da ordem. O caos quebra a possibilidade do
heroísmo e de deflação da maldade. A incompreensão gera a maldade, mas só é
possível compreender tentando entrar na sintaxe dos discursos do tempo da
maldade. Uma multidão só é de aceitável propósito quando é possível ler em seu
chamamento alguma razoabilidade que levou ao agrupamento. Quando não há
razoabilidade na escritura, há a perda da individuação (ou de autoria).
Com as suas Lâminas, Dheyne
de Souza pode remontar o poema em diversas possibilidades no momento da
construção, com razoabilidade de propósito, pois de ruptura para novas
passagens/mensagens. Com ruptura e recortes provocados por lâminas
afiadas, talvez o ar se desloque para novos ângulos exigidos pela
respiração.
Todo bom livro tem de ter
versos/frases que chegam para alimentar a consciência dos nervos e que serão
repetidos e reproduzidos séculos após a ocorrência de sua escritura. Necessário
o verso "Quero lembrar como se faz para ser bom de novo". Este verso
merece ser descoberto por Gonçalo M. Tavares para construção de um de seus
divertidos textos. Ser bom de novo em que? Produção de poesia, de moral, criar
ordem política, social, econômica? O homem só é bom quando não diverge, retoma
uma ordem firmada com carimbo, seja do poder, da irmandade, do dogma?
Conformamo-nos, na leitura, a
exigir que se diga no contexto de nossa compreensão, na forma estabelecida para
enquadramento de todos os discursos. Quero lembrar como se faz para ser
bom de novo. Quando é que uma forma envelhece e passa a ser uma mentira?
Talvez quando ela subjuga nosso olhar e nosso movimento. Posso ser “bom de novo”
com nova sintaxe, em nova espacialidade ou só quando aceito a uniformidade da
travessia da ponte, gado direcionado (ao matadouro ou à invernia?).
nesses tempos
algo vai enfraquecendo
a direção do olhar
E Dheyne de Souza tem esta
sabedoria de não fugir, de resistir, pois o verso perderia muito se não
remetesse à necessidade de o Homem recuperar a consciência de ser/ser
civilizado, de não enfraque/ser o olhar. No ato de olhar correto, a decisão não
sai envilecida. Alguns poemas fortalecem a presença ativa da poesia: “MP 870”
tem seu sentido histórico, pois até os pássaros “amanhecem alarmados” com
adoção de um ato legislativo do Governo; “milhares de minutos de silêncio” é um
engasgo pela morte de Marielle; “80 tiros” repercutem os disparos que continuam
a espocar nas comunidades. O poema “memória” – “essa lâmina que não vem só com
corte mas o cheiro dos móveis o vapor do olhar a temperatura do dolo”. Dheyne
de Souza traz alento para que nosso olhar não envelheça.
Depois de uma das muitas leituras
de Lâminas, de Dheyne de Souza, andei pelas cercanias de minha quadra para
olhar quais vizinhos estavam despertos e para olhar se a poesia interfere na
consciência coletiva. Os besouros estavam com a mesa posta a se alimentarem de
folhas de hibisco.