quarta-feira, setembro 11, 2024

A chave de ouro de Fernanda Cruz


Eu falaria sobre todas as nuvens, sobre todos os poetas, sobre todos os gravetos, da utilidade e da inutilidade de tudo que podemos enxergar atravessando o raio de sol. Um tronco que não é uma cidade, pois não se submerge nas águas. A palavra que nasce de uma outra e surge não só em versos de Tennyson. Em Fernanda Cruz, essa poeta goiana de farta versatilidade lírica, o verso "entreaberta noite de céu tão aberto" abre os braços. Em Tennyson, ressoa o verso "Fútil o ganho para o rei nada útil" (
It little that in idle king). Sem essas liberações internas, a poesia fica bem fútil, bem irrealizada.

Encontrei Fernanda Cruz por pura casualidade. Emergiu de um pavilhão em Goiânia, numa noite de dezenas de mesas rodeadas de poetas. Estava atrás de um balcão com seus livros entre milhares de pessoas. Rimos e nos conhecemos e somos irmã e irmão abraçados, surja o pavilhão iluminado ou a noite do apagado Humanismo. E nossas poesias se entrelaçam gulosas de língua e performance.

Gosto de me ocupar da poesia que não parte de uma exposição específica, que não desbarranca, mas que se ocupa dos esgarçamentos para entrelaçar línguas e desespero, se for desespero, ou braços, se esses se estenderem. Versos que surgem para surpreender quem escreve e quem lê. A ternura que nasce independente da lírica convencional, pois a vida quer se estender como árvores do cerrado. Galhos secos ou frutificados que se infiltram em aramados de caramanchões a recobrir a terra de vida para que nada seja estéril num socavão.

a sombra da árvore se alarga e se estreita
também meus braços se alargam num segundo
em outros braços que é o instante e se deita

E uma criança possivelmente virá recobrir com tinturas a sombra. Definir o sujeito para o verbo que ficou agarrado solitariamente no final de um terceto através de uma pequena garra (e). Mas os verbos, em Fernanda Cruz, são enganadores para inversão das metáforas. De repente não são os pés que alcançam o musgo (e os pés/o musgo alcança). Os pés talvez estivessem paralisados e o musgo fosse mais apressado.

Os verdadeiros poetas se realizam pelas grandes inversões que conseguem enxergar, pela visibilidade do interior das palavras e das construções que elas ofertam (subliminar/semblantes). As terminações das palavras são escorregadias, no entanto, as junções internas, quase comuns, mas diversas, são encontradas só com chaves muito pessoais. E Fernanda Cruz tem a chave de ouro na memória para desentranhar as junções das palavras. Nela, por esses desentranhamentos, os eventos são outros, já alheios ao cotidiano, à angústia.

Eu gostaria de entrelaçar versos só na memória como é a prática dos recitais de Fernanda Cruz pela capital goiana, essa poeta que estreou em 2008, com Regatos do Instante e publicaria ainda, em 2012, o poemário Ar mais próximo, para chegar a 2019 com esse Irreversível amarelo (2019). Seus livros são um exercício zen de abraçar. Se eu conseguisse retê-los na memória, não teria de interromper o fluxo dos espasmos do inconsciente. Pode existir a performance, podem ocorrer a doença e suas consequências, mas a poesia existe em qualquer circunstância, seja ou não abolida a presença do autor. Mas e a poesia de uma amizade, se a amizade exige presença? No entanto, a presença que atua na poesia de Fernanda Cruz não é mais a da autora, mas a de quem lê. Nisso a grandeza da leitura − somos a mistura do que somos com a de quem nos diz o que é ou quem foi. Depois de ler Fernanda Cruz − juntos, fertilizamos um eito da vida.

a voz que pousa
e faz voar
toda matéria

O livro do desassossego de Vassil Oliveira

Gustavo Doré

Certos livros são como nervos tensionados. Guardam tantas lesões de desassossego que tememos tocar neles e despertar dores que desconhecíamos adormecidas em nós. O novo livro de Vassil Oliveira, expressão intelectual das Letras e do jornalismo político de Goiás, é uma dessas obras amalgamadas com o próprio sangue do autor, que foi esvaindo através de feridas ocasionadas pela hostilidade que permeia o ambiente sócio-político de nosso tempo.

O Vassil é de índole vocacionada para a amizade e era inimaginável que ele tivesse de escrever com as tintas da própria dor. Ele não merece gastar os nervos com repuxos de sofrimento. Mas não temos o condão de impedir a dor. A dor vem não só do que provocam as estocadas das agressões, emerge também do contato com a beleza ou das desilusões que sentimos com as respostas agressivas às ações que praticamos em momentos que – incautos – não nos precavemos.

Em que pese o autor dizer que se compõe de crônicas, o livro Nem sempre sou assim (publicado pela Contato Comunicação, Goiânia, 2024) é da linhagem do Livro do desassossego, de Fernando Pessoa, onde as várias partes montam um painel metafísico que retrata o comportamento de uma época. O narrador discorre sobre o próprio desconforto de viver, de conviver, e, na leitura, confrontamo-nos com as nossas próprias desilusões.

Nesse seu terceiro livro, Vassil Oliveira se desnuda e, ao se expor com ampla franqueza, convoca todos para a análise do que deixaremos para daqui a cento e cinquenta anos. Não deixamos herança quando atuamos para destruir adversários em vez de nos ocuparmos em construir – não só obras públicas e preservação de ambiente de confortável sociabilidade, mas humanismo que possa ser praticado com orgulho por nossos descendentes.

São mais de sessenta textos que, entre outros temas, entrelaçam a prática do jornalismo, a paixão pelo futebol, reminiscências da vida do autor na região de Vianópolis, seio familiar (para afirmar que há um escudo de amparo e assim se proteger), e o desassossego, que se manifesta de pontos obscuros das articulações de fantasmas de almas apagadas, sempre armados para eliminar os adversários. Alguns fantasmas talvez venham a se reconhecer no livro e, certamente, intensificarão as intimidações. Os fantasmas dificilmente recuam.

Para contrapor à angústia de ser partícipe do tempo presente, que o sufoca frontalmente com agressividade - conforme exposto no longo depoimento “Sou outra história” -, Vassil Oliveira busca sossego em seguras fontes de repouso, de acolhida e sustentação. Ele relata na crônica “Procura-se sossego” que busca amparo na família e refúgio nos livros, no coaxar, nos pássaros. E a vida tem de ser o que for até o fim. Um autor é espelho para todo leitor. Vassil Oliveira está dizendo em seu novo livro que está expondo a dor dele, que ele busca refúgio, mas, na realidade, está indicando que é isto que resta a todos nós, que portamos alma e padecemos o desconforto de habitar o mesmo território dos hostis. 

O que Vassil Oliveira narra são essas estocadas que sofre na pele pela impossibilidade de diálogo, de compreensão e alteridade, numa repetição das previsões de Léon Bloy no início do Século XX nos textos que compõe o pequeno livro Nas
trevas
(1918), onde também fica expresso o desconforto de viver numa época de homens sem alma, sem espírito humanista. De um tempo de homens de forte musculatura, mas vazios de alma, vaticina Léon Bloy, “Sobrará isto: a putrefação universal”. Logo em seguida a essas previsões, por duas vezes o mundo seria terra arrasada pelos totalitarismos em guerra.

Os homens de alma sentem a dor e o odor da hostilidade, mas os de bela musculatura construída com fenol e álcool acham que o mundo é só deles. No final, a putrefação atinge todos e não estaremos de pé para assistir às nuvens que repararão a catástrofe. Assim vamos vivendo momentos conflituosos como aquele retratado na gravura de Gustavo Doré para um livro de Honoré de Balzac, onde todos digladiam com todos. Vassil Oliveira lembra que alguém vai ler “e achar que é recado”. E quem disse que não é?

Encostemos nossas armas e deixemos de nos perfurar com hostilidade. Para harmonizar e a fonte venha a jorrar águas claras, vamos conversar. É a mensagem do Vassil. Acredito.

A poesia de Dheyne de Souza não deixa que o olhar envelheça

Deve ser descartada a sintaxe que ordena o material para que pensamento consiga interpretar numa percepção ligeira, mas exigidas intervenções que venham inserir outras linhagens de compreensão, onde a visibilidade não ocorra em fórmulas e recortes uniformes.  É confortável eleger uma ordem e depois se sujeitar a ela e a ela se habituar, vindo a desaguar na desistência de buscas de novos ângulos de visibilidade. Só as novas visibilidades permitem novos trânsitos e novos textos.

Dheyne de Souza denuncia: “a ponte cega o verbo”, pois a ponte não estimula outras passagens, sujeitando o passageiro às mesmas paisagens e aos mesmos territórios. Dentro de uma zona de domínio, de conforto, deixa de ser discernível a individuação. Quando todos mantêm o mesmo ritmo, num mesmo propósito, num mesmo discurso, encontramo-nos num enxame, num formigueiro ou numa multidão. O enxame – define Byung-Chul Han – conforma-se com o mesmo resultado.

A ordem é traiçoeira, se o seu desejo impõe a repetição para retomar o espasmo já experimentado. Quando se aprende a curva, reproduz-se a curva. Quando se encontra a forma de sustentação, cria-se o molde da trave. É necessário destravar − e isso só pode ser obtido com a partição do puzzle para abrir possibilidades de outras montagens do discurso e de outros encaixes na interpretação. Até na imprensa o conforto passou a ser buscado em sua prática − otimiza-se a multiplicação do discurso a partir da cópia da postagem inicial. É mais confortável, econômico e sem risco trabalhar com o que já está pronto, posto e acolhido. Vamos perdendo para o lixo raras possibilidades que os materiais contêm. Todo sacrário tem sua chave e determina que não será aberta admissão a nenhuma outra divindade.

Não quero meu pensamento numa divinização monoteísta e uniformista. Prefiro admitir o pensamento propenso à estranheza a ser máquina de portabilidade de significados exigidos em requerimentos protocolados nos guichês do conformismo. Aproximo-me de uma experiência para que o espasmo deixe de repetir a baba e os esgares. Atraem-me os poetas que partem de alguma impossibilidade, que reconhecem que a composição não surge com a dicção do prazer de dizer a confissão pessoal, mas da infiltração de alguma incompreensão para tornar explícito que o incompreensível deve ser abordado. Dheyne de Souza afia suas lâminas para traçar ranhuras na sintaxe para experimentar se ainda há possibilidade de sangrar e de escapar da subjugação dos mesmos canais de expressão.

Tive oportunidade de estar junto com Dheyne de Souza em Goiânia por duas vezes. Participamos de debates e leituras. Ela sempre de lenço (ou cachecol? ou numa alternância de lenço e cachecol?) ao pescoço, construindo uma imagem muito circunspecta, com diálogos muito cautelosos nas conversas. Eu temia que a poesia dela se enfraquecesse nessas apresentações públicas, nas quais já era acolhida com merecido aplauso, pois os expectadores de recitais se contentam (e até exigem) comunicação verbal e expressão corporal e não exigência de composição que evada das facilidades do real. No entanto, essa capacidade de construir a imagem pessoal contribuiu para que ela não cedesse ao desbunde fácil da rua, pois usou a concentração corporal para respeitar o poema com exigentes etiquetas muito próprias, respeitando a construção dos poemas com policiamento e polida circunspecção.

Dheyne de Souza é uma tocantinense que morou em Goiânia, onde participou de muitos eventos (muitos recitais) literários, com rico material de aprendizagem de poesia em redes sociais e sites pessoais. Depois parte para São Paulo para seu doutorado em Literatura Brasileira. Portanto, a sua trajetória vem permitindo a ela alcançar consciência de visibilidades de novos territórios com derrubada da cegueira imposta pelas facilidades apresentadas pelas pontes prontas e já inflexíveis em seus materiais.

Em Lâminas, seu segundo livro − ricamente editado pela Martelo Casa Editorial, com design invejável de Helô Sanvoy, e tiragem extra de 50 exemplares em edição de luxo − sobressai uma poesia madura, onde se intercalam poemas rápidos, bem pedras portuguesas em elaborados mosaicos, bem como poemas com estruturas mais longas, na maioria prosoemas (seu terceiro livro, conforme anunciado pela mesma editora, composto só de prosoemas terá o título enquanto caio). A indefinição pela escolha de uma forma específica não chegue a ser prejudicial ao livro; talvez atenda o interesse do expectador desse tempo atual em não se fixar num mesmo formato, de total negação daquilo que se mostra na tela no mesmo enquadramento.

O livro já mereceu duas resenhas (disponíveis em sítios da internet), destacando a do poeta Wilton Cardoso, que, junto com Jamesson Buarque, integra o círculo responsável pela definição de novos parâmetros para a poesia goiana. E nesse círculo transita Dheyne de Souza. O importante é que o livro sobressai sobre as publicações de poesia atuais e consolida mais uma passagem rumo à definição de uma dicção personalíssima para a poesia de Dheyne de Souza. É um livro que chega inquestionável, sem lacunas, mergulhando a construção dentro das ocorrências pessoais e políticas. Também sobressai a busca de domínio da forma, ajustando a fluidez da escritura virtual a uma sintaxe, às vezes elíptica, às vezes de ruptura com as imposições virtuais. Alcança resultado, como já se disse, inquestionável.

Logo no preâmbulo, Dheyne de Souza sinaliza que não há uniformidade no real ou na prática construtiva de seus poemas (quebrados de rua/bebidos de pressa/ladrilhos sem linha). Esses três versos, em suas dezessete sílabas, bem se enquadram nas exigências elípticas da poesia japonesa. Um haicai enigmático? O importante é que o poema sinaliza a composição que será adotada no livro, bem como o terreno que irá ser desbravado.

Há um poema que irá mostrar a necessidade da exploração da sintaxe (da linguagem) para escapar do conforto daquilo que se vê da ponte e do conforto do território a ser encontrado com a travessia. A ponte impede o mergulho, o afogamento, o aproveitamento do inconsciente, do que está no fundo de si mesmo. Na experimentação da sintaxe, sem nenhuma expressão óbvia, não se desliga em momento algum dos efeitos internos que indica que um poema é um poema desde que o mundo é mundo (nomeiam, nadadeiras, seio, espreita, anseio). E, nesse embate com a validação da sintaxe, em outro texto relembra que há, às vezes, “um verbo cansado de ar”, pois o percurso para desbravamento de terrenos novos nem sempre ocorre com respiração segura. 


tem um lado do lago que esconde a língua
das margens que nomeiam as entranhas,
foz em que dormem os pequenos medos,
com suas nadadeiras arredias
vez ou outra atiçando um verbo
vez ou outra maldizendo um seio
à espreita-bolha de um espeto
na suspensão que é respirar escama,
em silêncio – brejo em mar,
no subterrâneo consoante
das vogais do anseio.

Quando se manipula uma lâmina, há uma ação de estrangulamento, de sangramento, de eliminação, de possibilidade de arranjos novos com o despojamento ou realocação de elementos. Dheyne de Souza usa suas Lâminas para despojar. Resta à sintaxe indicar, mostrar que o lugar comum está exaurido, pois está sendo executado pelo enxame. Ela deseja correr fora do enxame, não atravessar a mesma trilha, mas derrubar pontes. Poderia ter dito “lago que esconde as beiras”, o que seria o discurso óbvio. Poderia ter construído com o enxame o verso “suspensão que é respirar amor”. Poesia se faz com o domínio da linguagem, com martelamento dos materiais, com fuga da significação explícita. Se uma lâmina desmonta uma árvore, resta um monte de uma árvore ou a dispersão de uma árvore. Se uma centena de pessoas atravessa uma rua ou se aglomera, temos uma multidão. Mas qual ordem pode ser dada a esta multidão? A poesia tem de reunir todas as pessoas por cores de suas roupas, ou intercala-las? A sintaxe existe para atender os questionamentos do poeta. Uma centena de pessoas ordenadas deixa de ser uma multidão. As palavras que atendem ao propósito do chamamento de uma sintaxe pessoal se transformam num texto de leitura factível, em que pese a compreensão não ser factível para todos.

Entra ainda outro questionamento quando há ocorrência da perda da ordem. O caos quebra a possibilidade do heroísmo e de deflação da maldade. A incompreensão gera a maldade, mas só é possível compreender tentando entrar na sintaxe dos discursos do tempo da maldade. Uma multidão só é de aceitável propósito quando é possível ler em seu chamamento alguma razoabilidade que levou ao agrupamento. Quando não há razoabilidade na escritura, há a perda da individuação (ou de autoria).

Com as suas Lâminas, Dheyne de Souza pode remontar o poema em diversas possibilidades no momento da construção, com razoabilidade de propósito, pois de ruptura para novas passagens/mensagens. Com ruptura e recortes provocados por lâminas afiadas,  talvez o ar se desloque para novos ângulos exigidos pela respiração.

Todo bom livro tem de ter versos/frases que chegam para alimentar a consciência dos nervos e que serão repetidos e reproduzidos séculos após a ocorrência de sua escritura. Necessário o verso "Quero lembrar como se faz para ser bom de novo". Este verso merece ser descoberto por Gonçalo M. Tavares para construção de um de seus divertidos textos. Ser bom de novo em que? Produção de poesia, de moral, criar ordem política, social, econômica? O homem só é bom quando não diverge, retoma uma ordem firmada com carimbo, seja do poder, da irmandade, do dogma?

Conformamo-nos, na leitura, a exigir que se diga no contexto de nossa compreensão, na forma estabelecida para enquadramento de todos os discursos. Quero lembrar como se faz para ser bom de novo. Quando é que uma forma envelhece e passa a ser uma mentira? Talvez quando ela subjuga nosso olhar e nosso movimento. Posso ser “bom de novo” com nova sintaxe, em nova espacialidade ou só quando aceito a uniformidade da travessia da ponte, gado direcionado (ao matadouro ou à invernia?). 

nesses tempos
algo vai enfraquecendo
a direção do olhar

E Dheyne de Souza tem esta sabedoria de não fugir, de resistir, pois o verso perderia muito se não remetesse à necessidade de o Homem recuperar a consciência de ser/ser civilizado, de não enfraque/ser o olhar. No ato de olhar correto, a decisão não sai envilecida. Alguns poemas fortalecem a presença ativa da poesia: “MP 870” tem seu sentido histórico, pois até os pássaros “amanhecem alarmados” com adoção de um ato legislativo do Governo; “milhares de minutos de silêncio” é um engasgo pela morte de Marielle; “80 tiros” repercutem os disparos que continuam a espocar nas comunidades. O poema “memória” – “essa lâmina que não vem só com corte mas o cheiro dos móveis o vapor do olhar a temperatura do dolo”. Dheyne de Souza traz alento para que nosso olhar não envelheça.

Depois de uma das muitas leituras de Lâminas, de Dheyne de Souza, andei pelas cercanias de minha quadra para olhar quais vizinhos estavam despertos e para olhar se a poesia interfere na consciência coletiva. Os besouros estavam com a mesa posta a se alimentarem de folhas de hibisco.

segunda-feira, julho 31, 2023

segunda-feira, julho 16, 2018

Tributo a Jamesson Buarque


Desejo ressaltar, inicialmente, que, se há algum entrelaçamento de amizade para a escolha da obra de Jamesson Buarque para esta abordagem de sua obra, a afinidade inicial advém da própria magia de sua poesia. Antes da lavratura deste texto, encontrei-me umas três vezes com Jamesson Buarque em condições insuficientes para troca de alianças de compromissos pessoais ou de louvação de personalidade. Portanto, se há alguma afeição, como eu disse no tributo ao poeta José Godoy Garcia, é pela própria sedução da poesia.
Desde o contato inicial com a poesia de seu livro Meditações, com ela digladio com encantamento. A amizade com o autor certamente está sendo construída, pois somos amigos daqueles que derrubam barreiras para melhor nos integrarmos à realidade. Ao contrário da ação de algumas lideranças mundiais, a poesia e as atividades de Jamesson são uma trilha real para circularmos desimpedidos pelos territórios.
Logo depois de comparecer ao lançamento de Meditações, em Goiânia, registrei nas redes sociais que o livro traz vitalidade, vivacidade à poesia brasileira, e que a poesia, nas mãos de Jamesson Buarque, deixa de ser algo banal, ocupação de tempo, para ser exercício responsável, pleno de energia. De uma metafísica que só Fernando Pessoa, Rilke e Jamesson Buarque conseguem praticar.
                Depois fiquei relendo o livro por aproximadamente dois anos em busca de delinear o formato de construção de abordagem mais aprofundada, pois o registro inicial não suportava o meu deslumbramento com os poemas nele agrupados. À semelhança do que faço com Fernando Pessoa, Hölderlin, Jorge de Lima, passei a ler partes do livro no transporte público; de pé nas paradas de ônibus; nos intervalos de repouso no trabalho; circulando pela casa, movendo-me na rede, no repouso do vaso sanitário. Aí notei que o livro estava incorporado entre as obras dos grandes autores de minha constante leitura. Daqueles que podemos nos socorrer sempre que desejamos nos emocionar ou ressuscitar o formato de construção do poema. Daqueles que não só resistem à persistência crítica, mas que tem forte presença sedutora à qual não resistimos e voltamos sempre a ela com o mesmo entusiasmo, pois temos prazer em ser esmigalhados entre as unhas do sedutor, já diz a psicanálise – se bem me lembro das declarações de Maria Rita Kehl numa conferência que assisti na UnB. E a poesia de Jamesson Buarque nos torce entre as unhas de cada verso.

Ao assistir ao documentário Eight Days a Week  sobre The Beatles, fiquei imaginando algumas frases que pudessem ser acrescidas à crítica que viesse a produzir. Não tive como anotá-las ali no escuro do cinema, e assim, como muitas outras em outros momentos, foram perdidas. Imaginei-me lendo o livro como Sigourney Weaver, que, em seu depoimento no filme, disse que usou latas vazias de cerveja, na juventude, para alisar os cabelos e comparecer ao show dos The Beatles como se eles fossem notá-la toda arrumada durante o espetáculo, entre 56 mil pessoas. No entanto, não tenho mais o visual dos anos 1970 para me comportar como a atriz e nem terei oportunidade de fazer a leitura entre número tão desejável de leitores, se a edição de 700 exemplares de Meditações sequer foi toda comercializada, e, na literatura, são raros os pop stars (e os pop stars da literatura nem sempre são leitura recomendável). E, ainda, a leitura não exige a presença do autor, portanto, pode ser feita com os cabelos desalinhados ou até mesmo em estado de nudez absoluta. Se o ato amoroso é desenvolvido com exigências formais, não é prática de amor, mas crítica ao amor. Se há aprofundamento excessivo na leitura, há crítica e, possivelmente, inutilização do fluir emocional. Diante de Meditações, experimentei diversas posturas, e o livro suportou todas elas, inclusive a postura formal.

Quase não se questiona quais as condições ideais em que se deve ler poesia, se em clausura, em sonolência, dopado ou excitado. Num mundo de predomínio da estatística, se fosse possível, a emoção seria tabulada. As condições de leitura são tão diversas quanto diversas são as estruturas da psique de cada um (a psique de quem levou chuva nos barrancos do rio Calvo não é a mesma daquele que meditou às margens do rio Tejo).

Na estruturação, Meditações parte da leveza lírica do movimento introdutório para ganhar profundidade clássica crescente nas divisões que complementam o livro. E é bom que Jamesson Buarque tenha preferido organizar a obra assim, como ele mesmo explica em longa nota introdutória (sem uso da primeira pessoa, apesar de assiná-la). O auge ocorre no poema “Eros contra Afrodite”, onde o autor se aproxima da experiência mítica da história, encaixa-se no real, libera energias pessoais, resultando num texto complexo, sem tornar-se inodoro em instante algum. Como na poesia medieval - repetições, antíteses, fonética premeditada, rimas internas, inversões repetitivas de versos.

A sessão “Meditação dos dias” – que falsamente se apresenta como um corpo unitário – compõe-se de poemas isolados, cada um podendo ser compreendido em seu corpus próprio. Todas as seções desse poema, que me emociona sobremaneira, certamente pela aproximação dos eventos políticos contemporâneos ao momento de minha leitura, apesar de os poemas terem sido compostos durante uma realidade social não tão diversa, pois a crise do país ganha fôlego quanto mais se mantém longeva. Sobreleva, ainda, o andamento onírico-etílico dos versos. Vejamos este que surge no segundo texto do poema: “Eu drama num gole enorme de nada”. Talvez nesse poema resida um dos versos mais fortes de Jamesson Buarque (“um morcego morto num ventre de urubu”), em sobrevoo à altura de Augusto dos Anjos (“Um urubu pousou na minha sorte”). E quantos urubus pousam em nossa sorte e quantos morcegos agarrados ao ventre de tantos outros urubus!

Pela exposição do andamento do cotidiano, é de deduzir que toda a série de poemas da parte intitulada “Meditações do dia” traz elementos autobiográficos fragmentados nos versos, desde a experiência de leitura do autor à clausura no ambiente doméstico. Outros questionamentos ficam em suspenso: o que pesa mais no poema para ebulir a emoção? A construção formal? O confronto da realidade exposta pelo poeta com a realidade que se impõe ao leitor? A poesia só se confirma se “te agranda las tetas/te achica las tetas/te hace la puñeta/te levanta el culo/te deja sin culo” como confirmam os versos de Alberti em homenagem a Picasso. E a poesia de Jamesson Buarque aumenta o púbis e as tetas do leitor.

Poderíamos aprofundar a busca destes elementos autobiográficos presentes não só nesse poema; no entanto, fica o trabalho de campo como tarefa para algum futuro candidato a doutor em poesia. E esse futuro doutor em poesia, possivelmente, só irá comprovar que a remissão desse poema à obra O trabalho e os dias, de Hesíodo, se dá apenas no formato do encadeamento dos versos, pois a temática é bem antagônica. Hesíodo detém-se, pela própria época de composição de sua obra, no trabalho rural, enquanto que, em Jamesson Buarque, expande-se a bruxa drummondiana na estranheza da cidade. Também não chega a ser enganosa a aproximação do título às meditações de John Donne, pois a expressão metafísica sobressai nos dois autores.

Compreendo que, em Jamesson Buarque, há uma tensa ebulição da tradição poética, da evocação de eventos cotidianos, uma naturalidade na composição dos versos e exatidão em formatá-los, pondo em relevo o óbvio dos registros da realidade, que encrava no leitor o prazer de participar do canto cosmogônico do Universo, do caos político, da hilaridade de rir-se da própria dúvida existencial, sempre amarrado ao corolário da perfeição. A perfeição só existe se há quem dela participe e a compreenda. Muitos poetas brasileiros não são perfeitos para muitos em razão de a maioria não estar preparada para compreendê-los. Quando o país ler melhor seus poetas os resultados da política serão menos frustrantes, menos morcegos mortos no ventre de urubus. Ou vice-versa, a ocorrência de uma vertente de poetas que produz para a poesia ser encaixada numa proposta crítica, com enorme perda da espontânea fruição. 

Em 29 de maio, vai fazer dois anos que esquadrinho a régua e compasso o livro Meditações na tentativa de enquadrá-lo nas correntes da poesia brasileira. Apresentava-se, inicialmente, o neobarroco ou poesia de invenção, sobretudo em razão da introdução de Cláudio Daniel. Mas esta corrente se me apresentou insuficiente para a classificação da poesia de Jamesson Buarque. Só as referências míticas não justificam o neobarroquismo do livro, pois falta nele elementos surrealistas que permeiam a poesia de invenção, e, ainda, algum traço de obscurantismo ou de esvaziamento lírico da composição. Também não é suficiente enquadrar a poesia de Jamesson Buarque na poesia hermética ou na obscurantista ou nalguma vertente das vanguardas, pois das vanguardas, acredito, ela se liberou com fortes pés de elefantes, pisoteando-as com a estrofação organizada, e, nela, o discurso emerge para evidenciar o desconforto do fluxo da realidade.

Assim que cheguei a casa, após assistir ao filme sobre The Beatles, li um único poema do livro (“Da distância”). Concluí que também classificar Jamesson Buarque de modernista tardio, ou de evocar algum elemento dos desdobramentos do Modernismo, blá-blá-blá, seria injusto com a sua poesia. O Modernismo está completando cem anos e ainda estamos preocupados com seus desdobramentos nas obras dos poetas contemporâneos, classificando insuficientemente nossos poetas na terceira ou quarta geração do movimento. Falta manifestos, exposição, quebradeira por poetas mascarados para redirecionamento da classificação dos poetas contemporâneos? A produção poética de Jamesson Buarque, acredito, sobressai pela experiência do autor, corajosa, de valorosa lírica, sem temor de infiltrar-se pelo mitológico e pelo cotidiano. Com precisão, Jamesson reconstrói os mitos com as grades da realidade vivenciada. Basta saber que é uma poesia que se confronta com a experiência do trágico, do clássico e o mitológico.

No poema “Da distância”, há um pronome traiçoeiro no verso de abertura (tê-la nos olhos). No desdobramento da leitura, não ficamos confiantes na identificação do sujeito a que se refere o pronome. Será a “paisagem” ou a “morte” ou a “palavra”? Portanto, Jamesson sai à frente dos demais líricos atuais, pois não fixa a expressão num bilhete de óbvia comunicação amorosa. A lírica atua para criar a inserção do elemento humano na realidade, tornando a palavra permeável à invenção. A sonoridade se desdobra internamente (“distância”, “lembrança”, “fantasma”, “forma”, “aroma”, “inerme”). Em nenhum momento surge a palavra epiderme - pode até movimentar-se algum “corpo”, “ossos”, mas sem a presença de um outro específico dentro do poema. Dois versos são centrais:

 

“Entre os lábios, a palavra insistência decapitada

e a desistência vindo acenar de pertinho.”

 

Nessa sentença, o primeiro verso, de quinze sílabas, portanto, fora do padrão da versificação da língua brasi/portuguesa – próxima da versificação homérica –, traz certa obscuridade, pois a metáfora funciona na cristalização de si mesma. Apesar de “desistência” não ser um elemento vivo, com membros e decisão própria, é algo vivo que “acena” no segundo verso, que contém elementos orais, pois, pelo manual de versificação da língua portuguesa, também não é de boa praxe o uso do diminutivo. Elementos esses que provam que a poesia quer se libertar da sisudez da composição e arrastar-se com os pés das possibilidades de desarticulação das palavras. As palavras passam a articular outros significados. Depois, numa reunião em minha casa, pedi ao Antonio Miranda para ler o poema “Da distância” – leitura que postamos nas redes sociais. Consultei o Miranda sobre os efeitos da construção dos dois versos com a presença de elementos da oralidade, e ele abonou a minha visão do justo uso do diminutivo. A descontração libera o impacto do prazer do texto, ainda que ele imprima novos significados à expressividade das palavras.

Destaque, ainda, para a seção “Canção de Mallarmé”, que dialoga com o percurso da história clássica com elementos prosaicos do cotidiano, comprovando que está correto afirmar que “A história sempre acaba em livro”. Há um longo poema que vem encartado na sobrecapa dobrável que enriquece o exemplar, em homenagem à professora Goiandira Ortiz de Camargo. O poema dialoga com o signo e com as formas de alteridade:

 

 

Depois de hoje, saiba você que

brota da idade em meia aurora

outra página, outro signário

 

Nunca é tarde para outra via

nem para outra

 

Esta página surge agora e da matéria dos dias

da carne dinâmica dos dias

Às vezes me indago porque não deixamos o poeta existir sem tanta classificação. Talvez a futura crítica vá chegar a possibilidades totalmente multifacetárias de enquadramento da poesia que ora se produz nas diversas localidades brasileiras. Não vejo possibilidade de classificação de poetas tão díspares como os contemporâneos Jamesson Buarque, Luci Collin, José Inácio Vieira de Melo e Antonio Moura dentro de uma mesma corrente. Cada um atua com os elementos da própria formação, cultura local, leituras diferenciadas, com produções definidas em encruzilhadas individualizadas. 

Foi por casualidade o meu primeiro contato com a poesia de Jamesson Buarque. Ao coletar material para uma antologia da poesia de Goiás, visitei os sebos de Goiânia e comprei o seu livro Novíssimo testamento, de 2004. Busquei informações sobre sua atividade no universo virtual, deparando-me com um fomentador da poesia na Universidade Federal de Goiás, em promoções de oficinas literárias e nas redes sociais (mas nas redes sociais ele tem sido mais comedido nos últimos tempos). Quase me frustrei ao constatar que ele nasceu em Recife (PE). No entanto, ele já é merecedor de cidadania goiana por contribuir com a poesia da localidade desde 2009. Orbita em torno dele uma juventude em êxtase com a poesia. Merece saudação essa atividade, que inflama a juventude com um método de compreender a poesia, com novas propostas de liberação psíquica para produzi-la. Destaca-se ainda que essa atividade tenha contribuído para que ele também melhor organizasse o próprio método de composição, alcançando patamares raros de liberação lírico-onírica. Percurso idêntico foi meu encontro com o trabalho de Patrícia Ferreira, autora das ilustrações do livro e que é homenageada no poema “Patchwork”. No final desse poema, há um pequeno intertexto com a obra de Eliot, bem como outros intertextos em outros locais do livro. No poema “Da distância”, aparecem dois versos integrais de Manuel Bandeira. Por mencionar Eliot, relembro da récita do poema “Os homens ocos”, por Marlon Brando, no filme Apocalipse Now – momento fomentador da poesia que passa despercebido para o expectador iletrado de poesia universal.

 

Os filmes de Andrei Tarkovski nos afirmam que a poesia é um elo que entrelaça o homem no percurso do tempo dos vários territórios. O nosso território só será o mesmo amanhã através da poesia, mostrando que só perdura a angústia prazerosa da fruição de existir. Crescem outras canas, erguem-se outras casas, esfarelam-se outras sementes para outra serenidade à paisagem, a corrupção mal gasta outras moedas, mas o sentimento que vai perdurar é aquele registrado pela poesia. Quando há o cansaço de participar e agir, a poesia ainda contribui para preencher esse caos de desânimo e inoperância (ou ignorância). Quando a comunicação se apresenta deteriorada, a poesia se ergue de dentro da deterioração, organizada no quebradiço das palavras e dos gestos. A poesia nos reúne e nos emociona, seja em que corrente venha a ser escrita.

Para vermos esse entrelaçamento aterritorial e atemporal entre os homens, através da poesia, desejamos mostrar um verso de Jamesson Buarque em confronto com outro de Herberto Helder, do livro Os selos, de 1989, publicado no Brasil em 2000 pela editora Iluminuras:

 

“Pode ser o inventário do sono pode no casulo desdobrado quando a seda”

 

Acredito que Jamesson Buarque – astuto pesquisador da poesia universal para usufruto pessoal e orientação daqueles que orbitam em volta de seu talento – pode ter conhecido o poema de Herberto Helder antes da composição do livro Meditações, de 2015. Portanto, há mais de duas décadas da publicação do livro do poeta português, que só agora em 2017 circula no Brasil em edição completa, Jamesson também compôs versos longos, dentro do parâmetro da poesia exigida pelo seu tempo, de delírio e desconstrução frasal, de entonação nova, em confronto com a desordem do real, num novo estatuto frasal, numa entonação que exige novas pausas, num fumo que nos desloca do cansaço das mesmas esfoliações da seda se do Homem se do macaco se do rinoceronte:

 

”Mas rinocerontes não deliram macacos tomando leite morno”

 

Jamesson Buarque escreve com a sensação do tempo presente mitologizando-o com as inscrições do passado; organiza o onírico, materializando-o na expressão e na correta manifestação da poesia do pós-fuzilamento e das pós-vanguardas.  Meditações, com sua dose de arsênio e ópio próprio, é uma oficina literária para aquele que desejar conhecer a forma correta da manifestação poética em tempos de extrema deterioração da linguagem e debilitação da ética e do Humanismo. É uma poesia que retoma em nós a coragem de emocionar, já que é a rigidez estúpida que move a contemporânea exaustão de existir.

Introdução a questões históricas da poesia em Goiás

O Projeto de Extensão "I Colóquio de Poesia Goiana", vinculado aos Projetos de Pesquisa "Configuração do lirismo na poesia goiana contemporânea" e "Apresentação da poesia goiana: de 1948 aos dias atuais”, que aconteceu nos dias 12 e 13 de junho de 2017 na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Goiás, certamente contribuirá para maior validação crítica da poesia goiana.
Digo, inicialmente, que, ainda que eu falasse de mim, eu ainda estaria falando da poesia goiana, pois, apesar de eu ter construído a maior parte de minha vida em Brasília, sempre procurei manter convívio com a poesia goiana, com ela dialogando, ainda que com o íntimo e amoroso conflito que é peculiar aos seus escritores, sem me distanciar da cultura que me moldou na infância e na adolescência.
Há uns vinte anos  ao comparecer a um sebo de uma cidade satélite de Brasília , ouvi do livreiro que “Goiás não tem escritores, mas vomitadores de palavras”. A declaração não só transmitia uma visão dolorosa e deturpada da literatura de uma fronteira nova como afetou profundamente a minha postura crítica com todos os direitos civis de minha cidadania goiana e deles mantendo memória orgulhosa. Foi como se eu tivesse ficado marcado como uma rês pelas duas letras que meu pai, em seu analfabetismo, se orgulhava de manter dependuradas na parede. O corpo de um “J” servindo para acavalar a primeira perna de um “M” na peça de ferro que servia para marcar as suas poucas cabeças de gado com as iniciais de João Miguel, seu nome.
Assumi que teria de modificar meu formato de relacionamento crítico com a produção literária de Goiás, que teria de atuar para atenuar e reverter essa visão, mesmo sabendo que só o trabalho de minha geração não será suficiente para limpar esse embotamento que se construiu desde os tempos dos governos provinciais, que trabalhavam para que as fronteiras novas não evoluíssem. O meu trabalho não seria só produzindo poesia, mas estudando as questões que contribuem para que se tenha no exterior uma visão embaçada da literatura goiana.
                Além de criação de um blog para abrigar matérias sobre autores goianos, auxiliar o poeta Antônio Miranda na manutenção da página dos poetas de Goiás em seu site e de incluir na Wikipedia o perfil de grande parte dos poetas goianos, procurei identificar questões que não são devidamente levadas em consideração no momento de avaliação da literatura goiana, e aí, sobretudo a poesia, que é a vertente a que estou debruçado.
                Pode-se confirmar, ao estudar a história da região, que Goiás é uma fronteira econômica nova, pois antes do Século XX a região era só um veio factível à exploração. O ensino só foi introduzido em Goiás, sistematicamente, no Século XX (o censo de 1920 registra que 98% da população não estava alfabetizada; a escola Régia no Estado de Goiás é de 1787 e estava instalada só na cidade de Meia Ponte (Pirenópolis) e, em 1788. em Santa Luzia (Luziânia). Em 1827, além da escola régia da capital, já existiam quatro em outros arraiais.  A criação de escolas para meninas veio somente em 1831. A inauguração do Liceu de Goiás, em 23 de fevereiro de 1847, representa a institucionalização do ensino secundário em Goiás, que funcionou até 1937, quando foi transferido para Goiânia. Em 1882 para suprir falta de professores, foi criada num anexo do Liceu, a escola para formação de professores, mas que foi extinto dois anos depois por falta de alunos, a baixa remuneração dos professores não estimulava a formação para a área. Não sigo em frente com este histórico, pois foge muito do escopo do estudo da poesia, só ressaltando que o ensino superior só seria introduzido no Estado com a inauguração de Goiânia e que a descentralização do ensino superior só ocorreria às vésperas Século XXI. É bom concluir este tópico com um aforismo banal, mas certeiro: Não existe produção e consumo de literatura sem educação.
                Para reversão desse quadro, é bom destacar que a urbanização funciona como fator imprescindível para a modernidade da poesia A urbanização só se introduziu em Goiás com a construção de Goiânia (1942) e Brasília (1960). Max Bense avalia que, no Brasil, com o enfrentamento bruto da natureza, não sobrava energia ao colonizador para usar com a cultura, e, aí, com a formação pessoal e dos filhos.
Quase todo compêndio sobre o desenvolvi­mento do Brasil Central não economiza enumerações das causas do retardamento da maturidade cultural da região, sempre peculiares ao período de formação de qualquer povo com as mesmas características: o atra­so econômico, a desorganização social, a distância dos grandes centros urbanos, a ausência de vantajoso in­tercâmbio cultural com as metrópoles de avançada es­trutura de meios de veiculação da crítica e da formação cultural, a carência de investimentos públicos no setor e o tardio surgimento de centros de ensino.
E para que essas questões sejam compreendidas e enfrentadas, reconheço que questões estruturais exigem enfrentamento em várias frentes (governo, imprensa, rede de ensino, a família e os próprios escritores): investimento no ensino para formação cultural, com inserção do espírito de liberdade e de criação, e não só de produção de economia; convívio com as expressões culturais, com a internalização da cultura dentro dos lares, com disciplina individual para acolhida da cultura e comportamento que justifique no indivíduo a ação organizada para exercício da cidadania. Não é à toa que a casa goiana é pródiga em dependências destinadas à alimentação, tais como cômodo específico para tulha, despensa e cozinha, e fa­lha em reservar ambiente da moradia para a reflexão; imperioso que a imprensa e segmentos da própria cultura atuem de forma a incentivar a acolhida da produção plural (Kundera fez esse questionamento para a cultura de seu país); melhor investimento bem econômico/bem cultural. O enriquecimento econômico em si mesmo não libera a ética de um povo, Muito pelo contrário, o enriquecimento gera pobreza e corrupção. O bem cultural gera o equilíbrio da sociedade. Comprova esta assertiva a presença dos filhos dos magnatas da soja instalados em seus carros, nas praças das pequenas cidades goianas, atochados de alcoolismo e ainda sem nenhuma prática de cidadania ao perturbar a população com violento som automotivo.
Postas estas preliminares, apresento um resumo bem livre da poesia goiana de meu tempo, que foi se construindo com o esforço intuitivo de cada poeta. Mas, na apresentação de seu livro A República, Platão nos anima dizendo que só a intuição constrói a estética. Assim, só depois de 1942, com o advento da urbanização, começaram a florescer em Goiás gerações de poetas com ideário mais delineado: o segundo modernismo de engajamento com a vida e a natureza, o GEN e o grupo Os XV, além das razões de surgimento de grupos que praticaram uma poesia de resistência e de um simbolismo gótico. E, com o advento do Século XXI, com o fortalecimentos dos curso de Letras no estado, a poesia alcançou fortemente as redes sociais e uma prática emparelhada com as correntes vigentes no País, principalmente com a poesia de invenção.
Quanto à divisão dos períodos históricos da poesia goiana, serão mencionados aqui algumas ca­racterísticas mais recentes, pois Gilberto Mendonça Teles, em A poesia em Goiás, de 1964, pela Universida­de Federal de Goiás, e Assis Brasil, em A poesia goiana no século XX, de 1997, pela Imago Editora, apontam as principais correntes e divisões históricas até o perío­do de publicação de seus estudos. Colheita (A voz dos inéditos), de 1979, pela Inigraf, e Goiás, meio século de poesia, 1997, pela Kelps, ambos de Gabriel Nascente, contribuem menos, pois, com a ambição de preencher lacuna — no período não circulava nenhuma antologia da poesia goiana —, são menos ambiciosas na seleta dos autores e na caracterização do desenvolvimento da poesia goiana. O autor, na apresentação de uma delas, confessa que “poetas maiores, menores ou não, aqui se juntam (…)”. Nesta antologia o organizador prefe­re acreditar que todos se enfeixam numa organicidade capaz de apresentar com crédito, maturidade e inventi­vidade para estabelecer maior permanência da poesia de Goiás dentro da nacionalidade. E — como Gabriel Nascente em Goiás, meio século de poesia — acredita que o melhor corte da maturidade da poesia goiana se dá a partir da década 1940, pois a construção de Goiânia, em 1942, aproximou do meio rural a urbanidade de frutífe­ra miscigenação cultural.
Em Goiás, só em dois momentos, os poetas se organizaram com ideário próprio em torno de pro­postas poéticas. O primeiro momento se deu em 1956, quando foi criado o grupo Os XV, de alinhamento com Geração de 45. No entanto, muitos de seus integrantes — mesmo Jesus Barros Boquady e Gilberto Mendonça Telles, que eram líderes do movimento — acabariam retornando, em algum momento, à versão da poesia mais livre. A fidelidade à estética estabelecida pelo gru­po seria mantida de forma mais permanente apenas por Afonso Félix de Sousa. O segundo momento ocor­reu a partir de 1963. Do contraditório Grupo de Escri­tores Novos (GEN), que teve atuação mais formalizada até 1967, pode-se dizer que teve a função de conscien­tizar o poeta goiano para a forma de atuar aparelha­da das descobertas estilísticas em vigor no seu tem­po, ampliando o espectro de experiências de produção poética. Valeram-se dos jornais para divulgar trabalhos e fazer laboratório crítico. O grupo avançou até as van­guardas da época, tais como a Poesia Praxis, que ainda conta com Heleno Godoy e Luis Araújo Pereira em viva produtividade. Do grupo, ainda são expoentes Yêda Schmaltz, que tem produção diversificada, fazendo na região as primeiras interligações da poesia e da pin­tura com a linguagem da informática; e Miguel Jorge, que contribuiu de forma vivaz com o grupo e com as demais vertentes ao dirigir suplemento literário no jornal O Popular, contribuindo de forma a ampliar a visibilidade da literatura goiana no mercado editorial e na aceitação crítica fora de Goiás. Os remanescentes dos grupos Os XV e GEN continuaram dentro de suas dogmáticas, menos filia­dos à exposição da região, cada um se ajustando à lin­guagem que lhe convém, sempre margeando a reflexão política.
É importante ressaltar que alguns caminhos da poesia goiana, a partir do GEN, não vêm merecen­do melhor caracterização pelos historiadores, críticos e meio acadêmico. Sempre que se vai produzir novo estudo a orientação da pesquisa para a avaliação dos poetas e da sucessão dos períodos históricos esbarra nos limites estabelecidos pelo livro A poesia em Goiás. No entanto, publicado em 1964, os efeitos da mudança da capital do País e as consequências da ditadura, bem como o desenvolvimento das obras dos autores que co­meçavam a produzir naquele momento não puderam ser avaliados por Gilberto Mendonça Teles. Assim, os novos estudos esquecem que a ditadura acertou de cheio Goiânia, que, em razão da proximidade com a capital Federal, serviu para centro de prisões políticas, inclusive com cessão de dependências de instituições públicas para tortura e assassinato de presos políticos. Hoje, essas dependências são destinadas à produção e à exposição cultural. Por essa proximidade, tanto física, quanto de ação dentro da história, a ditadura acertou de cheio a literatura goiana, com sequelas visíveis até os dias atuais.
A partir daí duas vertentes foram se conso­lidando dentro da poesia goiana, sem que tenham nascido com a preocupação direta de resistência ao regime de exceção. A primeira vertente está preocupa­da com o “abismo”, a “noite”, o “escuro”, o “exílio” e o “silêncio”, que denotam o conhecimento da vigilância da opressão que ronda o espaço físico do poeta e, ain­da, demonstra a clandestinidade que o cidadão devia guardar silenciosamente; e, a outra vertente, que atua quase em paralelo, prefere esposar reação de estra­nhamento, sem denotar resistência direta ao período de “escuridão” política, mas de desconforto às “trevas” da própria existência. Estas duas correntes passaram a rejeitar — até os tempos atuais — os poetas do GEN. Essa rejeição, até agora, não foi analisada para apurar se o antagonismo se dá pela divergência que cada uma adotou diante da estranheza política da época ou pela condução diversa do formato da linguagem poética de cada corrente.
Não foi de engajamento direto contra a dita­dura ou outra segmentação política a produção do pri­meiro grupo. Vindo em descendência direta do moder­nismo de José Décio Filho e José Godoy Garcia, o grupo — que não teve organização formal ou formulação de ideário como tinha ocorrido com Os XV e o GEN — im­pregnaram suas obras de fluorescência humana, sem­pre com toque de desencantamento. É grupo que tem de ser lido com a acesa lembrança das contradições po­líticas do período, e sem a esperança de encontrar nele qualquer lirismo redentor. No segundo livro de Brasigó­is Felício, a voz do poeta conclama:

Não perdoa, Pai,
que eles sabem o que fazem
e como sabem fazer!

Ainda em 1987, Gabriel Nascente remete para o futuro as consequências desse tempo perdido, gera­ção que foi deslocada de suas possibilidades, proibida de ter conhecimento e consciência:

O tempo é um comboio invisível
que nos arrasta para o entardecer da vida.
A força da consciência se dilui — é o tempo.
O ontem tão cheio dos porquês: e agora, pesado,
cada vez mais certo nas ondas do futuro.

Aidenor Aires, em 1973, em versos cálidos, também se mostra poeta dos tempos sombrios que re­caem sobre Goiás e sobre a nacionalidade:

Uma ave branca ficará
chorando nos escombros

A segunda corrente adotou um simbolismo gó­tico para expressão do estranhamento de viver o espí­rito dos tempos sombrios da ditadura. Os estudos para instrumentação desta linguagem levaram algumas vo­zes do período a confundir onde fica(va) o limiar entre a vida e a obra. Valdivino Braz, Edival Lourenço e Delermando Vieira são os ápices desse segmento, que acabou tendo reflexos em poetas que seguiam por outras vias da poesia goia­na, tais como Pio Vargas e Tagore Biram. Em 2004, no poema “Evasão” — que pode ser o termo a ser escolhi­do para designar o sentimento que ficou do período — bem memorialístico do poeta gótico-pós-vaguardista, com desdobramentos internos, Edival Lourenço, após questionar ”o projeto (que) não se fez obra” e ”os pensamentos sob censura”, faz prédica da poética do futuro, pois foram assumindo líricas bem pessoais, insertas numa violência visionária, de busca de novas identidades para a linguagem e também para o homem exilado dentro do desconforto de existir no espaço e no tempo:


Só quero um dia obter a senha
Ter nas mãos a abracadabra
A aba que abrace a dobra
Ou a obra que abra as abas
E tirar de lá meu rascunho
Que jamais logrou escolha
Meus sonhos imanifestos
Meu destino sem outorga
Nem código de barra impresso
E aí noutro tempo e lugar
Me reconstruir em novas bases
Com aquela perdida face
Que lá também deve estar.

Por isso, a poesia goiana desse período deve ser lida e analisada com conhecimento da estranheza his­tórica vivida em Goiás com muito maior intensidade do que nas demais regiões do País. Era a ditadura, a guerrilha do Araguaia, o AI-1, o AI-2, o AI-3, o AI-4, o AI-5, o pau de arara. Um poema como esse de Edival Lourenço, para aquele que desconhecer o furor políti­co-social da época, não vai entrar no clima, talvez só vá julgar que o texto é expressão de uma lírica de desilu­são.
É claro que, num convívio com estas duas cor­rentes, surgiam poetas mais que transpareciam as estranhezas góticas e as e reflexos de outras corren­tes em andamento no País, com influências dos poetas de recorte da publicidade e da contenção leminskiana. No entanto, entre 1980 e 2000, foram raros os poetas que se acrescentaram às correntes da poesia goiana, sobressaindo Maria Abadia Silva e Marcos Caiado, e, separadamente, Pio Vargas e Tagore Biram — estes dois últimos se consumiram em alcoolismos estranhos, sem tempo para conclusão de suas obras.
Agora, é obrigação registrar que essas gerações tiveram de conviver com o desalento e o rancor de es­tar à margem do processo editorial e, em consequên­cia, do abandono da avaliação crítica. Ficavam, assim, obstruídos no caminho para o mercado editorial e sem a orientação para ajustes das poéticas pessoais, que só a crítica justa incita e estimula. Sob estas condições, tornava-se impossível a poesia produzir presença em territorialidades fora das fronteiras de Goiás, por mais que tenham sido criados concursos literários e bolsas de publicações sob os auspícios do Estado.
Com a ampliação da oferta de cursos de Le­tras, de Línguas, de Filosofia, e entrada de professo­res íntimos da literatura para suporte do ensino, foram sendo ampliadas as condições para surgimento de poetas capazes de absorver e expressar matizes e matrizes das vanguardas brasileiras. Depois de Pio Vargas, Edmar Guimarães e Wesley Godoi Peres entrarem com experimentos capazes de quebrar a for­ma de a tradição da poesia goiana lidar com a imagéti­ca da natureza, abolindo-a em nome da suspensão do real, emerge a geração voltada para a web, que desen­volve novas e desconstrói velhas linguagens, às vezes abolição do verso, às vezes a desconexão vocabular, ou a construção coletiva, ou o visual, ou a desconstrução frasal, ou o poema em prosa, o poema tuíte, ou o so­neto. Agrupados em comunidades virtuais, ensaiam novos formatos de lidar com a composição e com a circulação das obras. Alguns sequer publicaram livros físicos, pois acessíveis só em e-books, e, no entanto, já reconhecidos pela revista Poesia sempre, da Biblioteca Nacional.
                Há que se reconhecer a introdução de um poeta pernambucano, que vai se enraizando goiano, para insuflar adrenalina nos aspectos da poesia que se produz atualmente em Goiás. Jamesson Buarque tanto no meio acadêmico quanto no ombro a ombro com a juventude, e com a produção de uma poesia que certamente irá ser destaque na nacionalidade, insufla na camada mais jovem da poesia goiana o sentido da tradição e o esforço para que a palavra extrapole a capilaridade do real. 
Ainda é um mundo nebuloso, a web. Mas na névoa se esconde o inominável, o viajante, o poema perdido. Quando soube da escolha de poema de sua autoria para ilustrar este parágrafo, Marra Signorelli, com a jovem memória dos vinte anos, surpreendeu-se que o poema existisse que que fosse de sua autoria. Assim, Marra Signorelli, onde o muro da ditadura ainda está dentro, ou a impaciência do espaço incisivo da urbe, ou erro, ou a inconsciência, ou a eterna resistência da poesia:

Que aqui se faz a voz
Voz outra voz outrora atroz
Ou seria de dizer Vox
Nem Fox News ou CNN
Veloz
Como instinto de sílaba e sangue
De silêncio entremeando-me o si
De alguma peça ou de algum murmuro
Ou mesmo de algum carro que range
Porta ou fechadura corpo adentro.

O se.

Conforme previsto pelo artigo publicado em O Jornal do Rio de Janeiro, na edição de 11 de agosto de 1944, Goiás, com o Batismo de Goiânia, passou a ser o “centro de irradia­ção de novas bandeiras”. Goiás, portanto, não é só a bandeira que sina­liza e apressa a corrida para a construção de Brasília. Não é só a bandeira que abriu e apontou caminhos para a urbanização de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Tocantins, trazendo novos movimentos para o eixo do desenvolvimento econômico e cultural. Passada a eu­foria da corrida para essas frentes, a irradiação merece ocorrer de dentro para fora com celeridade, não só com liberação de estoque econômico, mas de bens culturais construídos por vozes erigidas na região.
Tudo isso balizado, a poesia desse território virgem e espoliado de sua riqueza deve ser tomada como gesto nascente, de vigor natural. E tudo que é jovem natu­ralmente vigoroso e autêntico  merece ser convocado para somar energia à nacionalidade.