Desejo ressaltar, inicialmente, que, se há algum
entrelaçamento de amizade para a escolha da obra de Jamesson Buarque para esta
abordagem de sua obra, a afinidade inicial advém da própria magia de sua
poesia. Antes da lavratura deste texto, encontrei-me umas três vezes com
Jamesson Buarque em condições insuficientes para troca de alianças de
compromissos pessoais ou de louvação de personalidade. Portanto, se há alguma
afeição, como eu disse no tributo ao poeta José Godoy Garcia, é pela própria
sedução da poesia.
Desde o contato inicial com a poesia de seu livro Meditações, com ela digladio com
encantamento. A amizade com o autor certamente está sendo construída, pois
somos amigos daqueles que derrubam barreiras para melhor nos integrarmos à
realidade. Ao contrário da ação de algumas lideranças mundiais, a poesia e as
atividades de Jamesson são uma trilha real para circularmos desimpedidos pelos
territórios.
Logo depois de comparecer ao lançamento de Meditações, em Goiânia, registrei nas
redes sociais que o livro traz vitalidade, vivacidade à poesia brasileira, e
que a poesia, nas mãos de Jamesson Buarque, deixa de ser algo banal, ocupação
de tempo, para ser exercício responsável, pleno de energia. De uma metafísica
que só Fernando Pessoa, Rilke e Jamesson Buarque conseguem praticar.
Depois fiquei relendo o livro por aproximadamente dois anos em busca de delinear
o formato de construção de abordagem mais aprofundada, pois o registro inicial
não suportava o meu deslumbramento com os poemas nele agrupados. À semelhança
do que faço com Fernando Pessoa, Hölderlin, Jorge de Lima, passei a ler partes
do livro no transporte público; de pé nas paradas de ônibus; nos intervalos de
repouso no trabalho; circulando pela casa, movendo-me na rede, no repouso do
vaso sanitário. Aí notei que o livro estava incorporado entre as obras dos
grandes autores de minha constante leitura. Daqueles que podemos nos socorrer
sempre que desejamos nos emocionar ou ressuscitar o formato de construção do
poema. Daqueles que não só resistem à persistência crítica, mas que tem forte
presença sedutora à qual não resistimos e voltamos sempre a ela com o mesmo
entusiasmo, pois temos prazer em ser esmigalhados entre as unhas do sedutor, já
diz a psicanálise – se bem me lembro das declarações de Maria Rita Kehl numa
conferência que assisti na UnB. E a poesia de Jamesson Buarque nos torce entre
as unhas de cada verso.
Ao
assistir ao documentário Eight Days a
Week
sobre The Beatles, fiquei imaginando algumas frases
que pudessem ser acrescidas à crítica que viesse a produzir. Não tive como
anotá-las ali no escuro do cinema, e assim, como muitas outras em outros
momentos, foram perdidas. Imaginei-me lendo o livro como Sigourney Weaver, que, em seu
depoimento no filme, disse que usou latas vazias de cerveja, na juventude, para
alisar os cabelos e comparecer ao show dos The Beatles como se eles fossem
notá-la toda arrumada durante o espetáculo, entre 56 mil pessoas. No entanto, não tenho mais o visual dos anos 1970 para me comportar como a atriz e nem
terei oportunidade de fazer a leitura entre número tão desejável de leitores,
se a edição de 700 exemplares de Meditações
sequer foi toda comercializada, e, na literatura, são raros os pop stars (e os pop stars da literatura nem sempre são leitura recomendável). E,
ainda, a leitura não exige a presença do autor, portanto, pode ser feita com os
cabelos desalinhados ou até mesmo em estado de nudez absoluta. Se o ato amoroso
é desenvolvido com exigências formais, não é prática de amor, mas crítica ao
amor. Se há aprofundamento excessivo na leitura, há crítica e, possivelmente,
inutilização do fluir emocional. Diante de Meditações,
experimentei diversas posturas, e o livro suportou todas elas, inclusive a
postura formal.
Quase não se questiona quais as
condições ideais em que se deve ler poesia, se em clausura, em sonolência,
dopado ou excitado. Num mundo de predomínio da estatística, se fosse possível,
a emoção seria tabulada. As condições de leitura são tão diversas quanto
diversas são as estruturas da psique de cada um (a psique de quem levou chuva
nos barrancos do rio Calvo não é a mesma daquele que meditou às margens do rio
Tejo).
Na
estruturação, Meditações parte da leveza lírica do movimento
introdutório para ganhar profundidade clássica crescente nas divisões que
complementam o livro. E é bom que Jamesson Buarque tenha preferido organizar a
obra assim, como ele mesmo explica em longa nota introdutória (sem uso da
primeira pessoa, apesar de assiná-la). O auge ocorre no poema “Eros contra
Afrodite”, onde o autor se aproxima da experiência mítica da história,
encaixa-se no real, libera energias pessoais, resultando num texto complexo,
sem tornar-se inodoro em instante algum. Como na poesia medieval - repetições, antíteses, fonética premeditada,
rimas internas, inversões repetitivas de
versos.
A sessão “Meditação dos
dias” – que falsamente se apresenta como um corpo unitário – compõe-se de
poemas isolados, cada um podendo ser compreendido em seu corpus próprio. Todas as seções desse poema, que me emociona
sobremaneira, certamente pela aproximação dos eventos políticos contemporâneos
ao momento de minha leitura, apesar de os poemas terem sido compostos durante
uma realidade social não tão diversa, pois a crise do país ganha fôlego quanto mais
se mantém longeva. Sobreleva, ainda, o andamento onírico-etílico dos versos.
Vejamos este que surge no segundo texto do poema: “Eu drama num gole enorme de nada”. Talvez nesse poema resida um dos
versos mais fortes de Jamesson Buarque (“um
morcego morto num ventre de urubu”), em sobrevoo à altura de Augusto dos
Anjos (“Um urubu pousou na minha sorte”).
E quantos urubus pousam em nossa sorte e quantos morcegos agarrados ao ventre
de tantos outros urubus!
Pela exposição do andamento do
cotidiano, é de deduzir que toda a série de poemas da parte intitulada
“Meditações do dia” traz elementos autobiográficos fragmentados nos versos,
desde a experiência de leitura do autor à clausura no ambiente doméstico.
Outros questionamentos ficam em suspenso: o que pesa mais no poema para ebulir
a emoção? A construção formal? O confronto da realidade exposta pelo poeta com
a realidade que se impõe ao leitor? A poesia só se confirma se “te agranda las tetas/te achica las tetas/te
hace la puñeta/te levanta el culo/te deja sin culo” como confirmam os
versos de Alberti em homenagem a Picasso. E a poesia de Jamesson Buarque
aumenta o púbis e as tetas do leitor.
Poderíamos aprofundar a busca
destes elementos autobiográficos presentes não só nesse poema; no entanto, fica
o trabalho de campo como tarefa para algum futuro candidato a doutor em poesia.
E esse futuro doutor em poesia, possivelmente, só irá comprovar que a remissão
desse poema à obra O trabalho e os dias,
de Hesíodo, se dá apenas no formato do encadeamento dos versos, pois a temática
é bem antagônica. Hesíodo detém-se, pela própria época de composição de sua
obra, no trabalho rural, enquanto que, em Jamesson Buarque, expande-se a bruxa
drummondiana na estranheza da cidade. Também não chega a ser enganosa a
aproximação do título às meditações de John Donne, pois a expressão metafísica
sobressai nos dois autores.
Compreendo que, em Jamesson
Buarque, há uma tensa ebulição da tradição poética, da evocação de eventos
cotidianos, uma naturalidade na composição dos versos e exatidão em
formatá-los, pondo em relevo o óbvio dos registros da realidade, que encrava no
leitor o prazer de participar do canto cosmogônico do Universo, do caos
político, da hilaridade de rir-se da própria dúvida existencial, sempre
amarrado ao corolário da perfeição. A perfeição só existe se há quem dela
participe e a compreenda. Muitos poetas brasileiros não são perfeitos para
muitos em razão de a maioria não estar preparada para compreendê-los. Quando o
país ler melhor seus poetas os resultados da política serão menos frustrantes,
menos morcegos mortos no ventre de urubus. Ou vice-versa, a ocorrência de uma
vertente de poetas que produz para a poesia ser encaixada numa proposta
crítica, com enorme perda da espontânea fruição.
Em 29 de maio, vai fazer dois
anos que esquadrinho a régua e compasso o livro Meditações na tentativa de enquadrá-lo nas correntes da poesia
brasileira. Apresentava-se, inicialmente, o neobarroco ou poesia de invenção,
sobretudo em razão da introdução de Cláudio Daniel. Mas esta corrente se me
apresentou insuficiente para a classificação da poesia de Jamesson Buarque. Só
as referências míticas não justificam o neobarroquismo do livro, pois falta
nele elementos surrealistas que permeiam a poesia de invenção, e, ainda, algum
traço de obscurantismo ou de esvaziamento lírico da composição. Também não é
suficiente enquadrar a poesia de Jamesson Buarque na poesia hermética ou na
obscurantista ou nalguma vertente das vanguardas, pois das vanguardas,
acredito, ela se liberou com fortes pés de elefantes, pisoteando-as com a
estrofação organizada, e, nela, o discurso emerge para evidenciar o desconforto
do fluxo da realidade.
Assim que cheguei a casa, após
assistir ao filme sobre The Beatles, li um único poema do livro (“Da
distância”). Concluí que também classificar Jamesson Buarque de modernista
tardio, ou de evocar algum elemento dos desdobramentos do Modernismo,
blá-blá-blá, seria injusto com a sua poesia. O Modernismo está completando cem
anos e ainda estamos preocupados com seus desdobramentos nas obras dos poetas
contemporâneos, classificando insuficientemente nossos poetas na terceira ou
quarta geração do movimento. Falta manifestos, exposição, quebradeira por
poetas mascarados para redirecionamento da classificação dos poetas contemporâneos?
A produção poética de Jamesson Buarque, acredito, sobressai pela experiência do
autor, corajosa, de valorosa lírica, sem temor de infiltrar-se pelo mitológico
e pelo cotidiano. Com precisão, Jamesson reconstrói os mitos com as grades da
realidade vivenciada. Basta saber que é uma poesia que se confronta com a
experiência do trágico, do clássico e o mitológico.
No poema “Da distância”, há um pronome traiçoeiro no
verso de abertura (tê-la nos olhos).
No desdobramento da leitura, não ficamos confiantes na identificação do sujeito
a que se refere o pronome. Será a “paisagem”
ou a “morte” ou a “palavra”? Portanto, Jamesson sai à
frente dos demais líricos atuais, pois não fixa a expressão num bilhete de
óbvia comunicação amorosa. A lírica atua para criar a inserção do elemento
humano na realidade, tornando a palavra permeável à invenção. A sonoridade se
desdobra internamente (“distância”, “lembrança”, “fantasma”, “forma”, “aroma”, “inerme”). Em nenhum momento surge a palavra epiderme - pode até
movimentar-se algum “corpo”, “ossos”,
mas sem a presença de um outro específico dentro do poema. Dois versos são
centrais:
“Entre os lábios, a palavra
insistência decapitada
e a desistência vindo acenar de
pertinho.”
Nessa sentença, o primeiro verso, de quinze sílabas, portanto, fora do
padrão da versificação da língua brasi/portuguesa – próxima da versificação
homérica –, traz certa obscuridade, pois a metáfora funciona na cristalização
de si mesma. Apesar de “desistência” não ser um elemento vivo, com membros e
decisão própria, é algo vivo que “acena”
no segundo verso, que contém elementos orais, pois, pelo manual de versificação
da língua portuguesa, também não é de boa praxe o uso do diminutivo. Elementos
esses que provam que a poesia quer se libertar da sisudez da composição e
arrastar-se com os pés das possibilidades de desarticulação das palavras. As
palavras passam a articular outros significados. Depois, numa reunião em minha
casa, pedi ao Antonio Miranda para ler o poema “Da distância” – leitura que
postamos nas redes sociais. Consultei o Miranda sobre os efeitos da construção
dos dois versos com a presença de elementos da oralidade, e ele abonou a minha
visão do justo uso do diminutivo. A descontração libera o impacto do prazer do
texto, ainda que ele imprima novos significados à expressividade das palavras.
Destaque, ainda, para a seção “Canção de Mallarmé”,
que dialoga com o percurso da história clássica com elementos prosaicos do
cotidiano, comprovando que está correto afirmar que “A história sempre acaba em livro”. Há um longo poema que vem
encartado na sobrecapa dobrável que enriquece o exemplar, em homenagem à
professora Goiandira Ortiz de Camargo. O poema dialoga com o signo e com as
formas de alteridade:
“Depois de
hoje, saiba você que
brota da idade em meia
aurora
outra página, outro signário
Nunca é tarde para outra via
nem para outra
Esta página surge agora e da
matéria dos dias
da carne dinâmica dos dias”
Às vezes me indago porque não
deixamos o poeta existir sem tanta classificação. Talvez a futura crítica vá
chegar a possibilidades totalmente multifacetárias de enquadramento da poesia
que ora se produz nas diversas localidades brasileiras. Não vejo possibilidade
de classificação de poetas tão díspares como os contemporâneos Jamesson
Buarque, Luci Collin, José Inácio Vieira de Melo e Antonio Moura dentro de uma
mesma corrente. Cada um atua com os elementos da própria formação, cultura
local, leituras diferenciadas, com produções definidas em encruzilhadas
individualizadas.
Foi por casualidade o meu
primeiro contato com a poesia de Jamesson Buarque. Ao coletar material para uma
antologia da poesia de Goiás, visitei os sebos de Goiânia e comprei o seu livro
Novíssimo testamento, de 2004.
Busquei informações sobre sua atividade no universo virtual, deparando-me
com um fomentador da poesia na Universidade Federal de Goiás, em promoções de
oficinas literárias e nas redes sociais (mas nas redes sociais ele tem sido
mais comedido nos últimos tempos). Quase me frustrei ao constatar que ele
nasceu em Recife (PE). No entanto, ele já é merecedor de cidadania goiana por
contribuir com a poesia da localidade desde 2009. Orbita em torno dele uma
juventude em êxtase com a poesia. Merece saudação essa atividade, que inflama a
juventude com um método de compreender a poesia, com novas propostas de
liberação psíquica para produzi-la. Destaca-se ainda que essa atividade tenha
contribuído para que ele também melhor organizasse o próprio método de
composição, alcançando patamares raros de liberação lírico-onírica. Percurso
idêntico foi meu encontro com o trabalho de Patrícia Ferreira, autora das
ilustrações do livro e que é homenageada no poema “Patchwork”. No final desse
poema, há um pequeno intertexto com a obra de Eliot, bem como outros
intertextos em outros locais do livro. No poema “Da distância”, aparecem dois
versos integrais de Manuel Bandeira. Por mencionar Eliot, relembro da récita do
poema “Os homens ocos”, por Marlon Brando, no filme Apocalipse Now –
momento fomentador da poesia que passa despercebido para o expectador iletrado
de poesia universal.
Os filmes de Andrei Tarkovski nos
afirmam que a poesia é um elo que entrelaça o homem no percurso do tempo dos
vários territórios. O nosso território só será o mesmo amanhã através da
poesia, mostrando que só perdura a angústia prazerosa da fruição de existir.
Crescem outras canas, erguem-se outras casas, esfarelam-se outras sementes para
outra serenidade à paisagem, a corrupção mal gasta outras moedas, mas o
sentimento que vai perdurar é aquele registrado pela poesia. Quando há o
cansaço de participar e agir, a poesia ainda contribui para preencher esse caos
de desânimo e inoperância (ou ignorância). Quando a comunicação se apresenta
deteriorada, a poesia se ergue de dentro da deterioração, organizada no
quebradiço das palavras e dos gestos. A poesia nos reúne e nos emociona, seja
em que corrente venha a ser escrita.
Para vermos esse entrelaçamento
aterritorial e atemporal entre os homens, através da poesia, desejamos mostrar
um verso de Jamesson Buarque em confronto com outro de Herberto Helder, do
livro Os selos, de 1989, publicado no
Brasil em 2000 pela editora Iluminuras:
“Pode ser o inventário do sono
pode no casulo desdobrado quando a seda”
Acredito que Jamesson Buarque –
astuto pesquisador da poesia universal para usufruto pessoal e orientação
daqueles que orbitam em volta de seu talento – pode ter conhecido o poema de
Herberto Helder antes da composição do livro Meditações, de 2015. Portanto, há mais de duas décadas da
publicação do livro do poeta português, que só agora em 2017 circula no Brasil
em edição completa, Jamesson também compôs versos longos, dentro do parâmetro
da poesia exigida pelo seu tempo, de delírio e desconstrução frasal, de
entonação nova, em confronto com a desordem do real, num novo estatuto frasal,
numa entonação que exige novas pausas, num fumo que nos desloca do cansaço das
mesmas esfoliações da seda se do Homem se do macaco se do rinoceronte:
”Mas rinocerontes não
deliram macacos tomando leite morno”
Jamesson Buarque escreve com a
sensação do tempo presente mitologizando-o com as inscrições do passado;
organiza o onírico, materializando-o na expressão e na correta manifestação da
poesia do pós-fuzilamento e das pós-vanguardas.
Meditações, com sua dose de
arsênio e ópio próprio, é uma oficina literária para aquele que desejar
conhecer a forma correta da manifestação poética em tempos de extrema
deterioração da linguagem e debilitação da ética e do Humanismo. É uma poesia
que retoma em nós a coragem de emocionar, já que é a rigidez estúpida que move
a contemporânea exaustão de existir.
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