“A Casa Cheia de Vazios” não só confirma o talento de Delermando Vieira, como também explicita uma espécie de diálogo ético, estético e etário com várias gerações de poetas
RONALDO CAGIANO - Especial para o Jornal Opção
Cada novo livro de Delermando Vieira vem acompanhando de um sopro místico e de um mergulho existencial, características peculiares desse autor que se diferencia da atual safra de escritores por uma dicção autêntica num momento crucial em que a literatura brasileira padece do vício da obviedade, contaminada pela reciclagem de velhas tendências.
“A Casa Cheia de Vazios” (Ed. UCG, Série Verso, 2010) provoca no leitor um alento estético acompanhando de um estranhamento, que nasce da profunda relação do autor com a transcendência e o onírico. Ora permeado de requintes góticos ou barrocos, ora mergulhado cavernas intangíveis da alma — algo que nos remete solidões ancestrais da própria idade da Terra — os novos poemas de Delermando penetram as frestas íntimas para uma tentativa de compreensão, mas também de apaziguamento de nossos embates psicológicos e nossas inquietações metafísicas.
A história de silêncios e vazios, que incomoda o homem e é responsável por erguer-lhe abismos intransponíveis, instaurou a angústia que tanto o exila ou aparta, sentenciando-o a viver um permanente estágio de dilemas pessoais, sejam éticos, quanto afetivos e filosóficos. É sobre o desmonte desse caos hereditário e abissal, que vem pontuando as re(l)ações na pós-modernidade, que Delermando tenta exorcizar. E na medida em que utiliza a palavra como instrumento cirúrgico, e de dolorosa catarse, “regurgita sua solidão” para compreender as sombras e sustos da trajetória pessoal e coletiva.
Esse trabalho ratifica que “o silêncio ainda é a mais vasta fala”, porque no concentrado vazio das palavras está toda a potência sensorial do artista. É no vácuo do que não foi dito, que há verdadeiramente a carga de possibilidades para interdição da melancolia, como se numa sequência de palimpsestos, o poeta fosse explorando e descamando os imbróglios interiores e desvelando a face oculta dos mistérios e segredos humanos, esmiuçando o inconsciente coletivo. Uma poesia aprioristicamente visceral, esfinge a desafiar o leitor para o (re)conhecimento daquilo que é essencial e humano.
A matéria-prima da escritura delermandiana é sua preocupação com o destino do homem nesse mundo de superficialidade e rotulações e com o lugar da arte, principalmente da literatura, quando a globalização e os fetiches do deus mercado são antípodas do pensamento e da emoção. E nesse trânsito, percebe-se um (in)tenso diálogo não só com a realidade exterior (social, geográfica, política e moral) como também uma investigação do suprarreal, do invisível, do que está encoberto ou subjacente em nossas fantasias, do que emerge das vertigens pessoais, do que sobrevive de nossa marginalidade psíquica, num vertiginoso inventário daqueles territórios escuros dos conflitos e desencontros/desencantos que tanto nos atormentam. Delermando não doura a pílula: vai fundo, faz uma ponte dialética entre Eros e Thanatos, atravessa o Letes, busca alcançar a terceira margem do rio-existência, vai além do Bojador, transpõe o Rubicão, ainda que no percurso de suas ideias, ande numa afiada lâmina que nos disseca e desafia.
“A Casa Cheia de Vazios” não só confirma o talento de Delermando Vieira, como também explicita uma espécie de diálogo ético, estético e etário com várias gerações de poetas, além de uma nítida apreensão do universo criativo de grandes mestres. Delermando bebeu nas grandes fontes poéticas e ficcionais, por isso é recorrente na sua obra uma forte expressão do insondável, na linha do já escreveram um Roald Dahl, um San Juan de La Cruz, um Rimbaud ou um Horacio Quiroga. A escritura delermandiana consolida uma proposta literária que caminha sempre em busca de uma verdade interior, muitas vezes retardada pela cegueira dessa época utilitarista, que vacila entre a emergência do “ter” e a necessidade do “ser”. Mais que isso, esse livro revela a autonomia e a pujança da produção literária de Goiás, um estado que tem premiado o leitor com autores e obras de elevado quilate, nada devendo ao eixo hegemônico e monopolista do Rio-São Paulo. De Hugo de Carvalho Ramos a Bernardo Elis; de José J. Veiga a Alaor Barbosa; de Cora Coralina a Gilberto Mendonça Telles; de Ursulino Leão a José Godoy Garcia; de Miguel Jorge a Salomão Sousa; de Afonso Félix de Sousa a Edival Lourenço; a literatura goiana se universaliza na obra de diversas gerações que pontificam no estado de fora dele, como Gabriel Nascente, Brasigóis Felício, Heleno Godoy, Valdivino Braz, Antonio José de Moura, Maria José Silveira, Augusta Faro, Guido Heleno, Ubirajara Galli, William Agel de Mello, Flávio Carneiro, Gil Perini, Flávio Paranhos e tantos outros.
RONALDO CAGIANO é escritor e crítico literário.
2 comentários:
A poesia Delermandiana é como flauteio, pois soa troçando o assombro da escuridão na inconsútil procura de dosobstruir a luz subliminar que, sem dúvida,é seu ensejo maior.
Edson Izídio
A poesia Delermandiana é como flauteio, pois soa troçando o assombro da escuridão na inconsútil procura de dosobstruir a luz subliminar que, sem dúvida,é seu ensejo maior.
Edson Izídio
Postar um comentário