O caminho pelo qual optou José Godoy Garcia fez com que se tornasse um solitário, o que é engraçado: artistas que devotam sua arte a temas sociais, à multidão, costumam ficar só. Ultrapassados pelo desencanto
JOSÉ CARLOS GUIMARÃES - Especial para o Jornal Opção
Faz tempo, tenho vontade de escrever sobre José Godoy Garcia, em minha opinião um dos três grandes nomes da poesia feita em Goiás (é irônico, mas a gente acaba circunscrevendo o artista às fronteiras políticas).
Falar nisso, o que há de mais relevante em matéria lírica, produzido nessa terra, só apareceu em meados do século passado, com a manifestação tardia do Modernismo entre nós. Foi Goiânia, mas quando, no Brasil, já se partia para a terceira geração do movimento, com seus respectivos desdobramentos formais. Aos trancos e barrancos, finalmente chegamos a 22 em 42, ano do batismo cultural da nova capital e do aparecimento da revista Oeste. Antes, o que fazíamos tinha ainda fortes impregnações românticas, praga da poesia e alegria incomensurável dos poetas menores. Poesia, com a proliferação destes, tornou-se para o cidadão comum sinônimo de coisa melosa, para não dizer melodramática, e, obviamente, sem o sentido de época do Romantismo. Um equívoco, enfim. A causa da permanência desse fenômeno, até hoje, só pode ser uma: desculpa para a incapacidade de compreender a poesia, já que o subjetivismo é uma forma de escapar inclusive das dificuldades da matéria poética. Esse pseudo-romantismo serve muito bem, portanto, a um ambiente cultural atrasado. Goiás o é, ainda, infelizmente.
Segundo esclarecimentos de Gilberto Mendonça Teles (A Poesia em Goiás), Léo Lynce não foi o primeiro modernista goiano. Nossa poesia continua dominantemente conservadora – entre parnasiana e simbolista! - até 1948, quando aparece Rio do Sono, livro de estréia de José Godoy. Se bem reconheça a influência de Bernardo Elis, possivelmente em função dos poemas de Primeira Chuva – que o levariam a Mário de Andrade e companhia -, Garcia é o primeiro a publicar um livro vasado pelas características modernistas, em Goiás, antecedendo Élis em sete anos. Sua obra, portanto, tem também um valor historiográfico inestimável, além do poético. Poeticamente, teve a função de trazer até nós, de uma vez por todas, as conquistas de 22, como se percebe claramente nesse poema (excerto de “O Elegante”):
Olhem o desmilinguido do reco-reco desrespeitando a mocinha calada no seu canto, de medo ou de vergonha,
mas com o melhor vestido no corpo
mas com a cara de virgem boa
mas com o peito belíssimo da gente pegar, o corpo saído do
banho com precaução, agorica.
Aqui e ali ousou, também, fazer como o outro Andrade, o Oswald, propugnador da “contribuição milionárias de todos os erros. Como falamos. Como somos” (cf: Manifesto da poesia pau-brasil”:
Zé Viramundo
queria uma casa.
Cum telhado? qui
casa cum telhado qui nada!
cum paredes, qui
casa cum paredes qui nada!
cum portais e janelas? Qui
portais e janelas qui nada
E ficou uma coisa doida.
Uma casa bonita, uma casa como nunca.
As gentes vinham ver a casa.
As gentes vinham de longe.
E ficou uma casa doida.
Bonita, como nunca.
Uma casa de chão e de Céu!
O poema que dá nome ao livro A Casa do Viramundo tem, decerto, um significado especial. Além das belas aliterações e das palavras “erradas”, o conteúdo revela uma mundividência toda pessoal, que aspira à liberdade em comunhão com a natureza. José Godoy Garcia é um poeta singelo, e por isso inconfundível. Mas, por favor: singelo, aqui, tem uma conotação positiva, perfeitamente condizente com o meio cultural em que surgiu, no que este meio tem de mais genuíno, de autêntico. Não tem nenhuma relação, portanto, com o pitoresco, que é tanto um meio de maquiar quanto uma forma de incompreensão. Creio que não se pode nunca, aliás, aplicar o termo goianidade a José Godoy Garcia – seria um crime de lesa-poesia. Sim, porque não estamos falando de um poeta ingênuo e folclórico, embora uma das qualidades suas seja a identificação telúrica com o homem, a paisagem e o ambiente locais:
José Aurora chegou a Posse
de sua viagem a Miracema.
E falou do gado beijando os homens nas casas.
Se a linguagem é o homem, o poema destes versos - Aqui é a Terra – traduz a nossa alma, íntimos que nós é como o chilrear dos periquitos e o cheiro de manacá. Ainda que não invista no vocabulário particular da gente goiana, à moda de Bernardo, Garcia amiúde escreve como falamos, o que é significativo: o parece ter para ele maior relevância é justamente a fala, não a escrita; a matriz, não o código. Ou seja: o material vivo, pulsante, fluido porque livre das insinuações gramaticais, não o material sintetizado e que por essa razão denuncia uma erudição estranha ao seu feitio, ao seu temperamento. É aqui, suponho, que ele se afasta de um Gilberto Mendonça Teles e de um Afonso Felix, lídimos expoentes de uma geração que radicou no segundo caminho.
O caminho pelo qual optou José Godoy Garcia fez com que se tornasse um solitário, o que é engraçado: artistas que devotam sua arte a temas sociais, à multidão, costumam ficar só. Tenho até a impressão de que, embora mais necessário do que nunca ao tipo de mundo em que vivemos – explico: como meio de não morrermos asfixiado -, ele está cada vez mais distante de nós, de nossa realidade e da juventude. Foi ultrapassado pelo desencanto. Autor de uma poesia que poderíamos já classificar de curiosa, não possui nenhum apelo visível aos olhos de uma geração egoísta, preocupada em se dar bem na vida, apenas e tão somente. É outra língua, tendente a desaparecer em função ora do idealismo, como em “A manhã está sendo feita”:
E com a mesma pontualidade com que o sol
faz a manhã,
uma outra manhã é feita nas mãos do homem.
ora da solidariedade universal, em A esperança em Angola:
A liberdade está nascendo.
Há um sol e tudo o que era vago
no coração e mente dos homens,
vai se tornando claro.
Esperança é fuzil. Angola será angolana.
Em regra, foi um cantor (e aqui apenas repito outros) das crianças, das mulheres, negros, bêbados, prostitutas, enfim, dos marginalizados. Brasigóis Felício talvez tenha razão em dizer que, por isso, ele se inspira em Walt Whitman, mas creio que há uma diferença crucial entre um e outro, apesar da temática e do coloquialismo. Enquanto o gigante norte-americano se coloca à frente da multidão, abrindo seus caminhos como alguém especial – e, note-se: auto-avaliado de maneira narcísica -, o bom poeta brasileiro se mistura aos que o seguem, como um igual. Poeta, entretanto, quer-se um homem comum, não um demiurgo. Esse cromatismo diferenciado deriva de convicções ideológicas divergentes: um era individualista, o outro o oposto disso.
Tenho absoluta certeza, hoje, que a arte tem um propósito acima de qualquer outro: transformar a si mesma perenemente, porque afinal é lúdica e seu escopo é surpreender o homem com seus achados. Numa palavra, seu maior objetivo é estético. Os maiores artistas, fatalmente, são os que perseguem este objetivo e deixam a sua marca pessoal, a sua contribuição original. Este não foi o caso de José Godoy Garcia, cujas convicções políticas obviamente talharam sua concepção artística pouco orgânica, ou pelo menos circunscrita em limites já postos, à época de sua manifestação. Ele não soube pensar a sua arte – a arte, mesma – sem a mácula, a ferida do social. Não soube, pois, separar a arte do homem, pecado partilhado por uma minoria de artistas: os demais costumam ser frios e/ou sombrios, embora possam ser tremendos.
A poesia, tantas vezes lapidar em suas formas, costuma ser pessimista, não acredita no homem – ao menos nele enquanto ser social. E esta há de ser a maior ambição de cada um de nós: acreditar no homem, apesar de tudo. Não nos resta outra alternativa, outra solução. É preciso muita grandeza, muita generosidade, para se proclamar aos quatro ventos, sem medo de se cair no ridículo, que a humanidade tem redenção, como fez o poeta José Godoy Garcia. Pensarmos bem, é uma posição de coragem; em certo sentido, uma posição heróica, que nos devolve aos mitos e ao sagrado. Hoje não, mas a poesia já teve, como na Grécia Antiga, uma função pedagógica: formar o homem e os seus valores, em sociedade. A poesia deste poeta, à parte suas possíveis limitações estéticas, engaja-se antes de tudo – antes mesmo que numa quimera chamada comunismo - nessa lição, e é útil porque nos torna melhores. As musas, com certeza, o perdoam.
JOSÉ CARLOS GUIMARÃES é crítico e escritor.
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