quarta-feira, setembro 11, 2024

O livro do desassossego de Vassil Oliveira

Gustavo Doré

Certos livros são como nervos tensionados. Guardam tantas lesões de desassossego que tememos tocar neles e despertar dores que desconhecíamos adormecidas em nós. O novo livro de Vassil Oliveira, expressão intelectual das Letras e do jornalismo político de Goiás, é uma dessas obras amalgamadas com o próprio sangue do autor, que foi esvaindo através de feridas ocasionadas pela hostilidade que permeia o ambiente sócio-político de nosso tempo.

O Vassil é de índole vocacionada para a amizade e era inimaginável que ele tivesse de escrever com as tintas da própria dor. Ele não merece gastar os nervos com repuxos de sofrimento. Mas não temos o condão de impedir a dor. A dor vem não só do que provocam as estocadas das agressões, emerge também do contato com a beleza ou das desilusões que sentimos com as respostas agressivas às ações que praticamos em momentos que – incautos – não nos precavemos.

Em que pese o autor dizer que se compõe de crônicas, o livro Nem sempre sou assim (publicado pela Contato Comunicação, Goiânia, 2024) é da linhagem do Livro do desassossego, de Fernando Pessoa, onde as várias partes montam um painel metafísico que retrata o comportamento de uma época. O narrador discorre sobre o próprio desconforto de viver, de conviver, e, na leitura, confrontamo-nos com as nossas próprias desilusões.

Nesse seu terceiro livro, Vassil Oliveira se desnuda e, ao se expor com ampla franqueza, convoca todos para a análise do que deixaremos para daqui a cento e cinquenta anos. Não deixamos herança quando atuamos para destruir adversários em vez de nos ocuparmos em construir – não só obras públicas e preservação de ambiente de confortável sociabilidade, mas humanismo que possa ser praticado com orgulho por nossos descendentes.

São mais de sessenta textos que, entre outros temas, entrelaçam a prática do jornalismo, a paixão pelo futebol, reminiscências da vida do autor na região de Vianópolis, seio familiar (para afirmar que há um escudo de amparo e assim se proteger), e o desassossego, que se manifesta de pontos obscuros das articulações de fantasmas de almas apagadas, sempre armados para eliminar os adversários. Alguns fantasmas talvez venham a se reconhecer no livro e, certamente, intensificarão as intimidações. Os fantasmas dificilmente recuam.

Para contrapor à angústia de ser partícipe do tempo presente, que o sufoca frontalmente com agressividade - conforme exposto no longo depoimento “Sou outra história” -, Vassil Oliveira busca sossego em seguras fontes de repouso, de acolhida e sustentação. Ele relata na crônica “Procura-se sossego” que busca amparo na família e refúgio nos livros, no coaxar, nos pássaros. E a vida tem de ser o que for até o fim. Um autor é espelho para todo leitor. Vassil Oliveira está dizendo em seu novo livro que está expondo a dor dele, que ele busca refúgio, mas, na realidade, está indicando que é isto que resta a todos nós, que portamos alma e padecemos o desconforto de habitar o mesmo território dos hostis. 

O que Vassil Oliveira narra são essas estocadas que sofre na pele pela impossibilidade de diálogo, de compreensão e alteridade, numa repetição das previsões de Léon Bloy no início do Século XX nos textos que compõe o pequeno livro Nas
trevas
(1918), onde também fica expresso o desconforto de viver numa época de homens sem alma, sem espírito humanista. De um tempo de homens de forte musculatura, mas vazios de alma, vaticina Léon Bloy, “Sobrará isto: a putrefação universal”. Logo em seguida a essas previsões, por duas vezes o mundo seria terra arrasada pelos totalitarismos em guerra.

Os homens de alma sentem a dor e o odor da hostilidade, mas os de bela musculatura construída com fenol e álcool acham que o mundo é só deles. No final, a putrefação atinge todos e não estaremos de pé para assistir às nuvens que repararão a catástrofe. Assim vamos vivendo momentos conflituosos como aquele retratado na gravura de Gustavo Doré para um livro de Honoré de Balzac, onde todos digladiam com todos. Vassil Oliveira lembra que alguém vai ler “e achar que é recado”. E quem disse que não é?

Encostemos nossas armas e deixemos de nos perfurar com hostilidade. Para harmonizar e a fonte venha a jorrar águas claras, vamos conversar. É a mensagem do Vassil. Acredito.

Um comentário:

Meclc disse...

👏 encontrei esse maravilhoso blog