Este texto deveria estar em outro blog, pois Sérgio de Castro Pinto não é goiano, mas permanecerá aqui, pois já foi visitado dezenas de vezes.
Ter nascido no mesmo ano de publicação
do livro Invenção de Orfeu, de Jorge de Lima, me deixa sempre comovido. Só
viria a conhecer essa poesia de construção inquebrável muitos anos depois, e
não poderia praticá-la, pois seria percorrer estrada já trilhada. E depois me
comove encontrar a obra daqueles que produziram poesia nos mesmos anos por
mim vividos. Adriano Espíndola é um deles, que, como eu, nasceu em 1952. E
também me comove e enriquece a poesia de Sérgio de Castro Brito, que só
recentemente passei a avaliar com mais justiça e extensão, e para nos tornarmos
transparentes e presentes um ao outro. Esse parágrafo pode estar fora do
contexto. Mas quem define o que entra e sai de um texto é o autor e o autor
aqui deseja fazer emergir e criar familiaridades.
Surpreendente ler a produção poética de
Sérgio de Castro Pinto e encontrar o clima tenso do momento histórico que
vivíamos e abordávamos na poesia em regiões distintas. Prova de que a ditadura
angustiava todos os escritores do país. O medo subjacente, o vazio de estar se
sentindo inútil numa repartição, numa sala de aula, pois viemos de uma geração
participativa.
Na Paraíba, a poesia está em festa neste
ano de 2017 para comemoração dos cinquenta anos da poesia de Sérgio de Castro
Pinto. A Fundação Espaço Cultural da Paraíba, com a terceira edição do evento
Agosto das Letras, no período de 17 a 20 de agosto, vai homenagear o poeta.
Serão quatro dias de debates, oficinas, feira de livros e lançamentos.
A poesia de Sérgio de Castro Pinto que,
desde o primeiro livro Gestos lúcidos (1967), nas definidoras
palavras de Geraldo Carvalho, prima pela “contenção da linguagem, o jogo verbal
reduzido ao mínimo e expressando o máximo”. Acaba de ser editado um volume com
a fortuna crítica de sua poesia, com uma centena de artigos e resenhas. Destaco
os textos de Ivo Barroso, Gilberto Mendonça Teles e Anderson Braga Horta.
Em resenha incluída no livro, Fernando
Mendes Vianna também aponta a :
“poética exemplar em matéria de poder de
condensamento, em que o duplo gume de uma síntese analítica não mutila o poder
verbal, mas reforma uma sadia víscera poética, salientando inclusive o sentido
social de uma cirurgia crítica brilhante”.
Esse condensamento ganhou forma ao longo
da carreira poética exitosa de Sérgio de Castro Pinto, que contribuiu para
descentralizar para o Nordeste as experiências inovadoras de quebra da tradição
com as novas possibilidades das vanguardas. Poética essa aliada à sua viva
atuação na ambiência crítica da Paraíba.
Faço essas anotações livres para
expressar o impacto que sinto no convívio com a poesia de Sérgio de Castro
Pinto. Texto bem livre, talvez até com alguma inexatidão, mas com legítima
sinceridade. Texto livre numa tarde de descanso, mas com o desconforto de saber
que outros poetas se ofuscam em diversas paragens com os desentendimentos do homem
no mundo. A diversidade com que é produzida a poesia brasileira e a extensão do
território muitas vezes nos tornam opacos ou ausentes uns aos outros.
No livro A ilha na ostra, de
1970, que guarda intensa relação com o universo contemporâneo, se encontra o
poema “Duas borrachas”, que leio sempre como um símbolo de composição de poema
que nasce para representar uma geração e para validar o ato de produção
poética. No gesto criativo de Sérgio Castro Lima, a borracha não é algo
estanque, que simplesmente anula. A borracha é abordada como se fosse a própria
ação do homem do período do regime militar. Há um versoque lembra outras
"borrachas que solidárias" desejam limpar outras borrachas, que
certamente não continham sol, pois preocupadas em criar escurecimentos com seus
erros:
DUAS ODES À BORRACHA
a flávio tavares e marcos dos anjos
I
a borracha
e sua arquitetura calma
de nuvem, de queijo
ou mesmo de sapo
que flexível ingere
as palavras-inseto
ou riscos incertos
de sobre o papel.
assim como um olho
totalmente fechado
que come os objetos
para dentro guardá-los,
a borracha alimenta-se
do medo e do inexato.
o seu interno
de construções erradas
precisaria
de outras borrachas.
borrachas que solidárias
o interno desta borracha
tornasse limpo e exato
e para isto apagassem
o que nela há de errado.
borrachas que solidárias,
caridosas e beatas
levassem o sol para dentro
desta outra borracha
e dela devorassem
sua construção errada.
II
esta borracha
guarda no seu bojo
os riscos da infância
em desequilíbrio.
esta borracha guarda
minha infância rabiscada:
calungas, casas, coqueiros,
toda infância apagada.
dentro desta borracha
a paisagem certa
de um verão
que o adulto repudiou.
esta borracha
foi nuvem que devorou
a água dos mares, os sóis
e os barcos da infância.
dentro desta borracha
há um outro verão
de sóis quadrados
e mares a(mar)elos.
desejos de externar
os destroços que ela guarda
mas quanto maior o desejo
mais a borracha me apaga
e o que escrevo agora
já é dela, se apagado,
e a borracha devora
um pouco do meu passado.
a borracha
é uma máquina fotográfica
de calungas, números, medos,
palavras e traços inexatos
e eles nela imergem
mas não serão revelados.
tenho ímpetos
de parti-la ao meio
e ver o seu intestino:
mares, barcos, sóis,
o verão e o menino.
Fico esperando que um poema
como esse, escrito no mesmo ímpeto drummondiano de uma “Máquina do mundo”,
tenha luminescência no conhecimento da nacionalidade. Com um poema desses
podemos reconhecer que somos seres que desejam estar instaurados fora do caos.
Um poema desses vem reafirmar que muitos excessos da realidade continuam a
merecer a ação da borracha para inscrição de novos destinos na escritura da
história.
Eu, Sérgio de Castro Pinto, Alberto da Cunha
Melo, Adriano Espíndola, Brasigóis Felício, Gabriel Nascente e tantos outros,
vindos de um mundo falido, de poética em busca de si mesma, tínhamos de
organizar outro formato de produção poética e de questionamento da realidade. Talvez
esse período se torne mais compreensível com a ação de uma historiografia que consiga
encaixá-la no contexto da nacionalidade. Nosso mundo caótico, repressivo, ainda
não foi analisado e compreendido para melhor inclusão da poesia no contexto
daquela realidade. Vão surgindo outras gerações e parece que esta que resistiu
não pode ocupar algum momento de clareza, devendo permanecer ali no limbo
intocável de todos os erros do período. E a poesia dos anos de chumbo era
guerreira, viva, sanguínea. Poesia que catalisou medo e fracasso. Uma poesia
vitoriosa, resistente, mesmo com temas sutis e composição disfarçada nas mutações
dos desmembramentos vanguardistas, dela emerge o homem angustiado e
perseguido. É uma honra ter produzido nesse período e poder estar buscando
outros formatos de ajuste da poética em outros tempos, também sombrios, pois
sem metas e, pior ainda, sem compromissos sociais.
Rendo, daqui de Brasília, com estas
palavras ao estilo de notas de rede social a minha homenagem aos setenta anos
de vida e cinquenta de poesia de Sérgio de Castro Pinto, que, em João Pessoa,
permanece ativo na poesia. Busca e anima formatos. É importante a atividade de
poetas que motivam a juventude para a arte. E Sérgio de Castro Pinto motiva,
assim como Jamesson Buarque incentiva a juventude à exaustão na fronteira de
Goiânia.
Voltarei a João Pessoa só para me
encontrar com Sérgio de Castro Pinto e nos sentarmos diante de uma
paisagem.
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