quarta-feira, julho 19, 2017

Sérgio de Castro Pinto

Este texto deveria estar em outro blog, pois Sérgio de Castro Pinto não é goiano, mas permanecerá aqui, pois já foi visitado dezenas de vezes.

Ter nascido no mesmo ano de publicação do livro Invenção de Orfeu, de Jorge de Lima, me deixa sempre comovido. Só viria a conhecer essa poesia de construção inquebrável muitos anos depois, e não poderia praticá-la, pois seria percorrer estrada já trilhada. E depois me comove encontrar a obra daqueles que produziram poesia nos mesmos anos por mim vividos. Adriano Espíndola é um deles, que, como eu, nasceu em 1952. E também me comove e enriquece a poesia de Sérgio de Castro Brito, que só recentemente passei a avaliar com mais justiça e extensão, e para nos tornarmos transparentes e presentes um ao outro. Esse parágrafo pode estar fora do contexto. Mas quem define o que entra e sai de um texto é o autor e o autor aqui deseja fazer emergir e criar familiaridades.

Surpreendente ler a produção poética de Sérgio de Castro Pinto e encontrar o clima tenso do momento histórico que vivíamos e abordávamos na poesia em regiões distintas. Prova de que a ditadura angustiava todos os escritores do país. O medo subjacente, o vazio de estar se sentindo inútil numa repartição, numa sala de aula, pois viemos de uma geração participativa.

Na Paraíba, a poesia está em festa neste ano de 2017 para comemoração dos cinquenta anos da poesia de Sérgio de Castro Pinto. A Fundação Espaço Cultural da Paraíba, com a terceira edição do evento Agosto das Letras, no período de 17 a 20 de agosto, vai homenagear o poeta. Serão quatro dias de debates, oficinas, feira de livros e lançamentos.

A poesia de Sérgio de Castro Pinto que, desde o primeiro livro Gestos lúcidos (1967), nas definidoras palavras de Geraldo Carvalho, prima pela “contenção da linguagem, o jogo verbal reduzido ao mínimo e expressando o máximo”. Acaba de ser editado um volume com a fortuna crítica de sua poesia, com uma centena de artigos e resenhas. Destaco os textos de Ivo Barroso, Gilberto Mendonça Teles e Anderson Braga Horta.

Em resenha incluída no livro, Fernando Mendes Vianna também aponta a :

“poética exemplar em matéria de poder de condensamento, em que o duplo gume de uma síntese analítica não mutila o poder verbal, mas reforma uma sadia víscera poética, salientando inclusive o sentido social de uma cirurgia crítica brilhante”.

Esse condensamento ganhou forma ao longo da carreira poética exitosa de Sérgio de Castro Pinto, que contribuiu para descentralizar para o Nordeste as experiências inovadoras de quebra da tradição com as novas possibilidades das vanguardas. Poética essa aliada à sua viva atuação na ambiência crítica da Paraíba.

Faço essas anotações livres para expressar o impacto que sinto no convívio com a poesia de Sérgio de Castro Pinto. Texto bem livre, talvez até com alguma inexatidão, mas com legítima sinceridade. Texto livre numa tarde de descanso, mas com o desconforto de saber que outros poetas se ofuscam em diversas paragens com os desentendimentos do homem no mundo. A diversidade com que é produzida a poesia brasileira e a extensão do território muitas vezes nos tornam opacos ou ausentes uns aos outros.

No livro A ilha na ostra, de 1970, que guarda intensa relação com o universo contemporâneo, se encontra o poema “Duas borrachas”, que leio sempre como um símbolo de composição de poema que nasce para representar uma geração e para validar o ato de produção poética. No gesto criativo de Sérgio Castro Lima, a borracha não é algo estanque, que simplesmente anula. A borracha é abordada como se fosse a própria ação do homem do período do regime militar. Há um versoque lembra outras "borrachas que solidárias" desejam limpar outras borrachas, que certamente não continham sol, pois preocupadas em criar escurecimentos com seus erros:

DUAS ODES À BORRACHA

 a flávio tavares e marcos dos anjos

 I

 a borracha

e sua arquitetura calma

de nuvem, de queijo

ou mesmo de sapo

que flexível ingere

as palavras-inseto

ou riscos incertos

de sobre o papel.

 

assim como um olho

totalmente fechado

que come os objetos

para dentro guardá-los,

a borracha alimenta-se

do medo e do inexato.

 

o seu interno

de construções erradas

precisaria

de outras borrachas.

 

borrachas que solidárias

o interno desta borracha

tornasse limpo e exato

e para isto apagassem

o que nela há de errado.

 

borrachas que solidárias,

caridosas e beatas

levassem o sol para dentro

desta outra borracha

e dela devorassem

sua construção errada.

 II

 esta borracha

guarda no seu bojo

os riscos da infância

em desequilíbrio.

 

esta borracha guarda

minha infância rabiscada:

calungas, casas, coqueiros,

toda infância apagada.

 

dentro desta borracha

a paisagem certa

de um verão

que o adulto repudiou.

 

esta borracha

foi nuvem que devorou

a água dos mares, os sóis

e os barcos da infância.

 

dentro desta borracha

há um outro verão

de sóis quadrados

e mares a(mar)elos.

 

desejos de externar

os destroços que ela guarda

mas quanto maior o desejo

mais a borracha me apaga

e o que escrevo agora

já é dela, se apagado,

e a borracha devora

um pouco do meu passado.

 

a borracha

é uma máquina fotográfica

de calungas, números, medos,

palavras e traços inexatos

e eles nela imergem

mas não serão revelados.

 

tenho ímpetos

de parti-la ao meio

e ver o seu intestino:

mares, barcos, sóis,

o verão e o menino.

 

Fico esperando que um poema como esse, escrito no mesmo ímpeto drummondiano de uma “Máquina do mundo”, tenha luminescência no conhecimento da nacionalidade. Com um poema desses podemos reconhecer que somos seres que desejam estar instaurados fora do caos. Um poema desses vem reafirmar que muitos excessos da realidade continuam a merecer a ação da borracha para inscrição de novos destinos na escritura da história.

Eu, Sérgio de Castro Pinto, Alberto da Cunha Melo, Adriano Espíndola, Brasigóis Felício, Gabriel Nascente e tantos outros, vindos de um mundo falido, de poética em busca de si mesma, tínhamos de organizar outro formato de produção poética e de questionamento da realidade. Talvez esse período se torne mais compreensível com a ação de uma historiografia que consiga encaixá-la no contexto da nacionalidade. Nosso mundo caótico, repressivo, ainda não foi analisado e compreendido para melhor inclusão da poesia no contexto daquela realidade. Vão surgindo outras gerações e parece que esta que resistiu não pode ocupar algum momento de clareza, devendo permanecer ali no limbo intocável de todos os erros do período. E a poesia dos anos de chumbo era guerreira, viva, sanguínea. Poesia que catalisou medo e fracasso. Uma poesia vitoriosa, resistente, mesmo com temas sutis e composição disfarçada nas mutações dos desmembramentos vanguardistas, dela emerge o homem angustiado e perseguido. É uma honra ter produzido nesse período e poder estar buscando outros formatos de ajuste da poética em outros tempos, também sombrios, pois sem metas e, pior ainda, sem compromissos sociais.

Rendo, daqui de Brasília, com estas palavras ao estilo de notas de rede social a minha homenagem aos setenta anos de vida e cinquenta de poesia de Sérgio de Castro Pinto, que, em João Pessoa, permanece ativo na poesia. Busca e anima formatos. É importante a atividade de poetas que motivam a juventude para a arte. E Sérgio de Castro Pinto motiva, assim como Jamesson Buarque incentiva a juventude à exaustão na fronteira de Goiânia.

Voltarei a João Pessoa só para me encontrar com Sérgio de Castro Pinto e nos sentarmos diante de uma paisagem. 

 

 


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