quarta-feira, outubro 24, 2012

Prêmio Jabuti vai para Edival Lourenço


Registro aqui o estudo de Ricardo Silva sobre o romance “Naqueles Morros, Depois da Chuva”, de Edival Lourenço, goiano e meu amigo.



Ricardo Silva
Especial para o Jornal Opção
Fazer comparações em literatura é sempre um risco que não gosto de correr. Não raras vezes costuma-se falhar vertiginosamente quando se faz isso. Mas às vezes é quase inevitável a comparação. Existem alguns autores que andam lado a lado na sua maneira de escrever, não importa qual seja o motivo. Outras vezes a comparação se dá de forma involuntária na cabeça do leitor, que vai traçando semelhanças entre essa e aquela obra. Mas não farei comparações, contudo acho que se faz necessário algum paralelismo, ainda que escasso, do último romance do escritor Edival Lourenço, “Naqueles Morros, Depois da Chuva”, com outros livros que possuem algumas semelhanças narrativas.

O bastardo filho de Bartolomeu Bueno da Silva, o Anhanguera, narra a saga de Luís de Assis Mascarenhas, governador da província de São Paulo e Minas de Goyazes, que está indo para o Arraial de Santana com a função de fazer com que a Minas de Goyazes tenha autonomia administrativa. A viagem é pontuada por acontecimentos insólitos e alguns um tanto quanto sinistros, que vão dando à narrativa uma eloquência que não nos deixa perder o interesse pela história que está sendo contada. Mesmo diante de todos os percalços do cerrado, de todos os contratempos que permeiam a viagem, a comitiva chega ao seu objetivo, com uma recepção acalorada e fogosa dos moradores de Arraial de Santana. Um passo dado para mais uma página da história do Brasil.

O romance de Edival é histórico, mas diferente do enfado que alguns autores desse tipo de romance nos colocam. Ele não apresenta a linguagem monótona que costumeiramente se esforça em mostrar que a pesquisa foi feita, colocando dentro da narrativa uma quantidade maçante de informações de cunho muito mais acadêmicas do que literárias. A escrita de “Naqueles Morros, Depois da Chuva” está muito longe desse estereótipo. Não que a pesquisa do autor não tenha sido bem feita; ela foi, mas ele soube dosar as informações de modo que a literatura e a história se diluíram para se tornarem uma mistura tão homogênea que não existe possibilidade, dentro da trama edivalina, das duas serem separadas, porque, caso isso ocorra, todo o enredo ficará descambado. Dentro dessa acepção, o romance foi milimetricamente bem construído. A reconstituição histórica feita pelo escritor goiano é de um fôlego soberbo. O leitor pode ver todo o ambiente, o cerrado, no qual estão a caminhar a comitiva de Dom Luís, com seu calor infernal, sua aridez, seus caminhos tortuosos. E, além disso, os costumes e hábitos deste rincão são descritos com precisão, seja na figura dos padres, dos personagens mais diagonais, ou ainda na imagem do próprio narrador, que talvez seja o espelho mais claro de como se pensava naquela época.

Retomando as primeiras linhas, o livro dá a possibilidade de se fazer um paralelo com algumas outras obras que seguem essa linha de um narrador que conta uma história para um interlocutor que não aparece nunca, acentuadamente os livros “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa, e “Sargento Getúlio”, de João Ubaldo Ribeiro. O romance de Edival lembra em certos aspectos esses outros dois romances. Vale frisar que o escritor goiano não tem, em termos da estilística, nenhuma semelhança nem com o escritor mineiro e nem com o baiano. As semelhanças ficam adstritas à montagem da história e o apelo linguístico aflorado. Contudo as diferenças são cabais: os romances de Ubaldo e Guimarães são quase uma espécie de complementação um do outro. Talvez a grande distinção seja a ambientação e o tamanho dos enredos, além do  fato de que no livro de Ubaldo há divisão de capítulo e o de Guimarães consta apenas de um grande monólogo. Sem contar que os narradores são meio “destrambelhados” em suas coloquialidades. Já no livro de Edival o narrador, mesmo sustentando um ar de jagunço, é visivelmente autodidata: sensível, refinado, com altas doses de sarcasmo e erudição, inclusive com citações em latim. É um sábio das coisas da cidade e do sertão.

Além do narrador peculiar, “Naqueles Morros, Depois da Chuva” tem um ritmo narrativo que dá conta perfeitamente da descrição de uma viagem: ora rápido, ora lento, assim mesmo, na velocidade do caminhar da comitiva, com capítulos curtos e outros mais longos. Ritmo magistralmente concebido para dar conta do enredo. Ponto relevante também se dá no fator linguagem. O livro de Edival é uma verdadeira proeza neste aspecto por não se prender a um regionalismo pueril e nem deixar que a escrita seja anacrônica para um leitor sem familiaridade com o vernáculo. Acerta em cheio quando resolve descrever as paisagens num tom poético, numa linguagem que é da época, mostrando mais uma vez que sua exaustiva pesquisa foi bem executada. Sem dúvida ele deve ter lido uma quantidade considerável de documentos de cronistas de viagem, para poder fazer com que a narrativa tivesse esse ar barroco, dando verossimilhança aos termos empregados, o que faz o leitor sentir-se numa viagem espaço-temporal para a época retratada. Uma sacada de um ótimo escritor, que não se perdeu no meio do caminho linguístico, que soube preparar um bom romance.

Depois de quase 20 anos da publicação do genial “Centopeia de Néon”, Edival Lourenço volta ao gênero romance com fôlego novo (em cada romance existe um escritor diferente), confirmando sua importância dentro do cenário literário nacional; e mostrando sua perspicácia narrativa, sua inteligência linguística, seu esmero ficcional. Sendo o primeiro de uma já planejada trilogia, “Naqueles Morros, Depois da Chuva” é um grande romance, que retrata com letras únicas uma parcela importante da história do nosso país; um romance construído sobre o signo da meticulosidade (tão característica da obra de Edival Lourenço), que arrebata seu leitor, me perdoe o clichê, da primeira a última página, sempre com aquele desejo de que cada página se multiplique em outras.

Leia um trecho de “Naqueles Morros, Depois da Chuva”
Algumas testemunhas — e em terra infestada de vadios desvalidos o que não faltam são testemunhas, dessas que a tudo veem, desde o cão chupando mangaba de cócoras na sombra do pé, até crime de quebra-cabaço nos escurinhos detrás da igreja — algumas testemunhas afirmaram ter visto o índio vagal esticar-se para os lados da banda sul, com fúria de água de represa derruída no afã de voltar a ser ribeirão, com tal velocidade que se ele usasse camisa e a dita camisa fosse de estampa xadrez, em sua fralda se poderia jogar dama ou gamão. De posse dessa informação providencial, ato contínuo a patrulha-diligência se volta para os lados da banda norte com ares de quem executa uma astúcia bilontra, a insinuar que, se o índio permitiu ser visto exalando-se para o sul, é por artimanha da mais deslavada.
É só um meio de implantar despistes e ir indo para o norte sem quaisquer embargos de perseguição. Mas, no fundo, sabem de sobejo aqueles improvisados milicianos, pois, mesmo sendo improvisados, estrabulegas é  que não são, que é mesmo para o sul que o índio do corso terá vazado, até se coagular em tocaias ou diluir-se no azul das distâncias. Só que procurá-lo no lado contrário é, com certeza, quase zero o risco que se corre de também ter o peito fubecado pelo trespasse de outra flecha iracunda embebida de erva malina e vir a morrer de jeito horrível, que nem o elemento da comitiva do capitão-general, aos estrebuchos, seguido de asfixia, como que enforcado de dentro pra fora.

É só no finalzinho da tarde, com a boca da noite já engolindo os últimos fiapos de salivas de sol, sem luta corporal, sem um disparo de um tiro sequer, sem uma porretada que seja, que os cinco bate-paus gaiatos e morrinhentos vêm retornando. Não trazem o índio por inteiro, nem aos pedaços, nem uma orelha, nem um dedo, uma nesga de couro do lombo, o aro do botoque ou do fiofó que fosse, passado numa embira ou num talo de ramo à-toa. Nem ao menos notícias quentes do dito corso eles trazem. Nada. Porém exibem, nos tocos de cara sem-vergonha, um certo ar de dever cumprido e cansaço meritório, enquanto manifestam uma opinião deveras convicta: num raio de légua e meia, pelo menos, o bugre meliante e assassino cujo foi encontrado é nenhum. Por isso mesmo, com base nesse relatório de negativas, o chefe da segurança local, sem pudores nem negaceios, apõe garatuja ao rodapé de proclama formal que um secretário escrivão logo manuscrita, dando conta, por dedução, de que, nesse raio, por tirocínio da polícia e graça de Nosso Senhor Jesus Cristo, tudo está dominado.
Ricardo Silva é escritor.

sábado, outubro 20, 2012

André de Leones e a infância



Nesta manhã de sábado, enquanto aguardo o dia se ajustar ao horário de verão, repasso rapidamente o romance Dentes negros, de André de Leones. As imagens inseridas ao texto do livro, a busca de raízes, o percurso dos personagens num movie road, remetem-me a algumas reflexões da minha infância.
Mas ainda não será desta vez que irei abordar criticamente um livro de André de Leones (e já abordando!). Estas palavras é mais para dialogar comigo mesmo.
Talvez por sermos de Silvânia, prazerosa cidade histórica de Goiás, e eu e sua mãe termos vivido uma juventude de íntima e construtiva amizade, tive o privilégio de ter sido um dos primeiros leitores de um livro dele. Livro inédito, de poesia. Ele já vivia sua inquietude e sua busca, rumo à maturidade. Lembro-me de nosso encontro na casa de minha irmã.
Em Dentes negros, os personagens, mesmo apregoando que não tiveram infância, vão rememorando pequenos fatos, que não deixam de ser a formação de uma geração: a do próprio André de Leones, que perdeu a intimidade com ruas raízes para ativar a intimidade com o humano. Basta ver que as imagens integradas ao texto não trazem nenhum vulto de ser vivo. O que já comprova a mudança do formato de as gerações formarem as imagens da infância: os locais destas imagens de André de Leones, para mim, sempre aparecerão povoadas de pessoas, pássaros e outros animais da infância. E da própria maturidade, quando de meus retornos a estas paisagens. Acredito que eu não conseguiria flagrar estas paisagens de Dentes negros esvaziadas de humanidade. O esvaziamento das figuras da infância é um dos fatores da produção de rancor. Por isso eu digo que todas as contradições de minha infância e de minha juventude estão resolvidas: o bulling, a pobreza, a exploração do trabalho infantil, tudo. Insito: tudo isso está integrado à minha aprendizagem de nacionalidade e de minha própria personalidade.
A geração que veio com o surgimento da “geração tela” (só para usar da sabedoria de Harold Bloom) que é a de André de Leones , não tiveram e não terão a mesma formação das gerações anteriores. Aí as dificuldades de os personagens de Dentes negros se identificarem com o passado.  Dentro da velocidade, com espaços que sempre estão se modificando, sobra muito pouco tempo para a geração tela se deter no homem com contato visual e físico.
Dentes negros, e espero que assim seja com todos os futuros livros de André de Leones, é de temática atual, oportuno e que merece ser adotado nas escolas goianas, para que a juventude se veja e, assim, veja se é isto mesmo que quer. Só um autor desta geração que agora se forma para registrar as contradições do homem novo que vai se formando no país. A minha já está muito distante da infância para se aborrecer com as próprias origens, mas que mantém a esperança e a luta para que o homem do Planeta, do Brasil, das pequenas cidades silvanienses vá se formando com dignidade e ética, satisfeito consigo e com a nacionalidade.