quarta-feira, julho 19, 2006

Brasigóis Felício


Brasigóis Felício (veja aqui) tem 36 livros publicados, entre obras de poesia, conto, crônica, romance e crítica literária. Presidiu a UBE-GO (União Brasileira de Escritores, seção de Goiás) e ocupa a cadeira 25 da Academia Goiana de Letras. É detentor de dezenas de premiações literárias, e integra antologias de contos e poesias publicadas no Brasil e em outros países. De literatura marcadamente crítica de seu tempo, Brasigóis Felício enriquece a Literatura Goiana pela postura — assumida e necessária — de resistência. A fortuna crítica sobre sua produção literária inclui estudos em universidades, jornais e revistas especializados do Brasil e do exterior. Pertence à geração literária que emergiu em Goiás a partir da década de 1970. A antologia No Barco dos dias – 30 anos de navegação poética reúne alguns dos poemas que marcaram sua produção poética do período.

ALMA ATLÂNTICA

Não sou eu quem me navega
Quem me navega é o mar.
Paulinho da Viola

O mar navega o Ser,
nas tempestades
da palavra incendiada.
O poeta navega a esmo
no mar de dardos
de seus atos insensatos.

Em que oceano aceso
navega o poeta errante
na singradura do instante?

Uma vida morta
não tece a manhã
no sol do Ser.

Se não sou o mar
em eterna luta
e contradição,
eu me estanco
no pântano da mornidão.

Eu só desejo
amar no maro insondável
a revelar-se
em ritual de ser
limite e vastidão.

Amar no mar
que em tudo existe
a parte grande
da minha alma Atlântica


SETEMBRO ABSURDO

Era manhã de setembro
e ela me chupava o membro.
Drummond

Era manhã iluminada
de um sol esplendoroso
quando, como em um filme B
de terror americano
o mundo foi desabando
em Nova Iorque sitiada,
em que o velho Sousândrade
antevira o caos,
em seu Guesa Errante,
no berço do Deus capital,
antes de retornar ao Maranhão,
onde, tratado como um inútil,
passou a viverdas pedras da Vitória,
a chácara de sua amásia.

Pensar que o débil poeta
pressagiou, com olhos de profeta,
o triunfo do absurdo,
e que o gauche itabirano
cantou um dia
a angústia do poeta
em não poder, sozinho,
dinamitara ilha de Manhattan.

A SOLIDÃO DE
EMILY DICKSON

A mais abissal solidão
não foi a de Noé,
em sua arca,
quando só havia
a treva
em toda a terra.

Mais espantosa solidão
foi a de Emily Dickison
na fazendola de seus pais,
nos confins da Inglaterra
- de onde jamais saiu,
a não ser para ver morrer
parentes e vizinhos.

No inverno de sua desesperança
sentia-se, como Noé,
sozinha no mundo.
Sequer moveu-a a fé
no reino das palavras: não
escreveu para que a amassem
nem escrevia porque
amasse alguém.

Escrevendo para não morrer,
só viveu para escrever.

Jamais amou, nem foi amada
nem viu arder a chama da alma
pela beleza transfigurada.

Seu único deleite era ver
pessoas acabando-se
em seu leito de morrer,
como se fora o ver
a morte
o seu único prazer
- o diálogo possível
com a vida,
neste mundo de morrer.

sábado, junho 17, 2006

Dois poemas de José Godoy Garcia

Este poema de José Godoy Garcia é um clássico da Literatura Goiana:

Espécie de balada da moça de Goiatuba


Em Goiatuba
tem uma moça
que coração
grande ela tem
Em Goiatuba
tem uma moça
que coração
grande ela tem.

A moça de lá
é só chamar vem

De Goiatuba
eu guardo
muitas recordações

De lá eu guardo
muitas recordações

Lá tem rua
que parece bicho
querendo se esconder
por detrás do mato

Lá tem homem
que lutou na revolução

Lá tem farmacêutico
que sabe latim

Lá tem padre que mora
com mulher na rua de cima
e de tarde sobe de lanterna na mão
Lá tem cadeia
assombrada
e tem louco nas grades rindo feito
bicho com fome
Em Goiatuba
tem uma moça
que coração bom ela tem
A moça de lá
desde menina
serve aos homens
com sabedoria
Toda moça no mundo
aprende que corpo
não se pode mostrar
vestido deve vestir
vergonha deve sentir
amor deve esconder
sonho pode sonhar
A moça de lá
não aprendeu a sonhar
A moça de Goiatuba
é como a fonte
que dá de beber
é como a árvore
que dá frutos
é como a noite
que dá as estrelas
Ela só não compreende porque os homens
têm coisa com ela
Um dia indagou:
-“Por que ocêis me mandam
deitar no chão?”
-“Eu visto meu vestido,
eu ponho colar bonito,
eu enfeito os meus cabelos
com flor
Eu estou bonita
com o meu vestido
eu estou bonita
com esta flor
vocês me mandam tirar vestido,
ocês são bobos?”
Lá em Goiatuba
tem uma moça
que coração grande ela tem.
A moça de lá
é só chamar vem.


Este poema abre Os Dinossauros dos Sete Mares, livro que José Godoy Garcia considerava que melhor representava a sua obra. Esta é a versão final do poema que saiu na edição de Poesia, em que Godoy apresentou a versão final de seus poemas:


Os sobreviventes

Quando todos imaginavam a vida sem sentido
chegaram de manhã os sobreviventes,
e levantaram suas moradas, estiveram no rio,
procuravam o rebanho disperso, preparavam
o alimento, cantavam, derramavam
o suor nos campos, faziam fogo à noite
rememoravam o corpo de suas mulheres,
despachavam os barcos, pela manhã.
As chuvas eram sempre bem-vindas,
as chuvas levantavam o pó da terra
e enchiam de confiança a face da vida.
As mulheres viam nascer dentro de si
um novo rebento, os seus ventres cresciam.
Nenhum sinal de confiança quando as mulheres
apareciam de ventre crescido.
Os dias eram os mesmos, a esperança
e a desesperança eram as mesmas.

quinta-feira, junho 15, 2006

José J. Veiga, Cora Coralina, José Godoy Garcia e Bernardo Élis

Clássicos da Literatura Goiana

A primeira obra formadora de uma tradição literária goiana surgiu só em 1917, no período do pré-modernismo. Tropas e boiadas — livro que mistura contos e crônicas —, de Hugo de Carvalho Ramos, contribuiria para os fundamentos do Regionalismo. Sem esse livro, não existiria a tradição literária capaz de insuflar o surgimento da obra de Bernardo Elis e do mineiro Guimarães Rosa.
Três livros de Bernardo Elis merecem destaque: Ermos e gerais, contos (1944); O tronco, romance (1956); e Veranico de janeiro, contos (1966), pois consolidariam o processo lingüístico capaz de refletir a realidade da região. Nenhum goiano, hoje, pode desconhecer o drama inserido no conto A enxada, do livro Veranico de janeiro. Esse conto representa para Goiás o que O capote representa para a literatura russa. Com Bernardo Elis, Goiás pela primeira vez se assentaria na Academia Brasileira de Letras e teria acesso a importantes prêmios literários nacionais.
A maturidade definitiva da Literatura Goiana seria alcançada com a edição dos contos de Os cavalinhos de platiplanto (1959), de José J. Veiga, que consolidaria carreira literária de mais de 15 títulos. É o goiano mais estudado no país, as suas obras talvez tenham sido adotadas em todo território nacional. Todos os livros de José J. Veiga encantam pelo modo peculiar de criticar o ambiente carregado que vivia o país sob o tacão do regime militar, numa linguagem despojada, com reflexo luminoso da ambiência das cidades goianas. Ler, estudar, criticar José J. Veiga é ato de cidadania goiana. A sua obra é ato de firme brasilidade.
Cora Coralina é um caso raro na literatura brasileira. Apesar de ter nascido em 1889, viria a se consagrar só em 1980 com a publicação de carta aclamativa de Carlos Drummond de Andrade. Não é obra de invenção, mas que tem cativado o país inteiro pela legitimidade de seus textos. Ela se coloca por inteira nas crônicas e nas poesias, numa obra que é ineludível patrimônio de Goiás.
Ainda não resgatado pela crítica, José Godoy Garcia figura como estrela solitária na poesia goiana. Seu primeiro livro, Rio do sono, é de 1948, e, de 1972, o antológico Araguaia mansidão, que representa o amadurecimento total do autor, sendo o cume de toda a poesia produzida até agora em Goiás. Trata-se de poesia legítima, com cheiro da terra, das águas, do ar, do fogo goiano. Poesia preocupada com a aurora.

Literatura Goiana, viagem aleatória

Em qualquer manual estão inscritas as causas do retardamento da maturidade cultural do Centro-Oeste: o atraso econômico e a desorganização social de seu povo, a distância das grandes metrópoles, a ausência de vantajoso intercâmbio cultural com as metrópoles de avançada estrutura dos meios de veiculação da crítica e da formação cultural, a carência de investimentos públicos no setor e o tardio surgimento de centros de ensino. Com a agravante da interiorização, que dificultava o envio dos filhos para estudos na metrópole ou na Europa. Basta lembrar que só em 1846 foi instalado em Vila Boa (atual Goiás), o Liceu de Goiás. Sem formação, só é possível cultura popular. E literatura não é cultura popular, apesar de nela vitalizar-se.
Não é de hoje o reconhecimento dos entraves históricos que deixavam no abandono a atividade cultural. Ainda em 1942, em artigo publicado na revista Oeste, José Décio Filho reclamava que, em Goiás, “sempre nos faltaram orientação segura e incentivo, principalmente. Estado que ora se integra tão auspiciosamente na civilização brasileira, após tantos anos, de incubação sentimental e inútil, vive ainda soletrando o bê-a-bá das letras, completamente fora do mundo intelectual do país”.
Assim, pode-se constatar que apenas nos primeiros centros colonizados do País (Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia e Minas Gerais) houve ambiência para o Arcadismo, o Barroco, o Romantismo. Nos demais Estados, as condições seriam idênticas às desenvolvidas no Centro-Oeste. Só depois de completado o ciclo do ouro, a classe dominante buscou rumos que possibilitassem a formação de seus filhos. Então, só no advento do Modernismo houve ambiência para que um movimento literário alcançasse repercussão nacional. Portanto, o intelectual goiano deve compreender que é recente a sua territorialidade cultural, mas que deixou de existir fronteira para a interação com as metrópoles. A interação só será barrada se as metrópoles descobrirem que ele mesmo não se compreende.
É tão importante a formação para credenciamento do homem para a prática literária que os quatro principais escritores goianos estudaram no Liceu de Goiás. Por ali passaram Hugo de Carvalho Ramos, Bernardo Elis, José J. Veiga e José Godoy Garcia. Com o despertar da cidadania que o ensino formal enseja, três deles buscaram contato com as grandes metrópoles culturais. Assim, na década de 40, a literatura ascenderia à maturidade literária iniciada em 1917 por Hugo de Carvalho Ramos, com Tropas e boiadas, que o jovem Luiz Ruffato inclui na seleção de seus livros prediletos, e que o músico Elomar destaca como uma das grandes contribuições para a sua formação (Que brasilidade, que coisa bonita!, declarou em entrevista).
José J. Veiga, assim batizado literariamente pelo seu amigo Guimarães Rosa (“O Guimarães Rosa era muito versado em numerologia. Quando eu estava para lançar o primeiro livro, ele disse: ‘Você vai sair só como José Veiga? Assim não dá, ninguém tem apenas nome e sobrenome. Disse a ele que eu chamava José Jacinto Pereira Veiga. Ele tomou nota, fez alguns cálculos, levou algum tempo e disse: ‘Põe José J. Veiga, vai ser bom para você’.”), começou a publicar mais tarde. Só em 1959, depois de trabalhar na imprensa carioca e na BBC de Londres, publicaria Os cavalinhos de Platiplanto. Com esse livro e os vindouros, colocou o Brasil na vanguarda do realismo fantástico. Do fantástico crítico, de resistência à opressão. Nenhum outro iria se ombrear com ele.
Desde o período que começa com o lançamento de Hugo Carvalho Ramos e vai até o lançamento do GEN (Grupo de Escritores Novos), em 1963, surge uma plêiade de escritores inapagáveis da história literária, que as forças intelectuais de Goiás têm a obrigação de manter vivos com o correto posicionamento crítico. Basta mencionar João Accioli (um dos instauradores do Modernismo no Estado), Jesus de Barros Boquady (que morreu totalmente esquecido em Brasília, com grande parte de sua poesia ainda por publicar), Carmo Bernardes (de leveza e autenticidade tão ausentes da literatura nacional!), Eli Brasiliense (o naturalismo está novamente em voga), e Afonso Félix de Souza (um dos poetas goianos mais bem publicados fora do Estado). E uma centena de outros mais, alguns sendo reabilitados lentamente, sobretudo os poetas, em coleção da Universidade Federal de Goiás.
Com a inserção de Goiás na pós-modernidade, através do GEN, surgiu uma constelação de autores, e, nesta constelação, o sol do conflito. Aproveito aqui para me penitenciar por ter aceitado participar do conflito em determinado instante de minha juvenil atuação crítica. Imperdoável que, num dos momentos mais importantes para as obras de Heleno Godoy e Miguel Jorge, eu tenha atendido chamamentos — muitas vezes sugeridos por forças externas à minha compreensão — para macular parte de suas produções.
E agora, com humildade e melhor visão, reconheço que Heleno Godoy é um dos raros goianos que busca inovação de linguagem. E sem o trabalho de Miguel Jorge — somadas aí as suas obras literárias, um dos raros a escrever para o teatro no Estado — à frente do suplemento de O Popular, os novos escritores de Goiás não teriam alcançado o mercado editorial e a crítica das grandes metrópoles. Foi só o suplemento ser extinto para muitas portas se fecharem para a literatura goiana, principalmente das centenas de concursos literários promovidos pelas Prefeituras Municipais.
Alguns autores merecem nova hierarquização e melhor inserção na história da literatura: Heleno Godoy, Miguel Jorge, Antônio José de Moura, Gabriel Nascente, Aidenor Aires (prêmio Nestlé, que precisa trazer a lume novas obras), Maria Helena Chein, Coelho Vaz, entre outros. Yêda Schmaltz merece transitar por fora do GEN, já que sua obra teve aval crítico mais universalizador. Ainda Brasigóis Felício, com a sua literatura de resistência visceral; Valdivino Braz e Delermando Vieira, que optaram pelo neo-simbolismo; Pio Vargas, que teve participação meteórica na poesia goiana, também na linhagem neo-simbolista; e Dionísio Pereira Machado, com autenticidade neo-realista. Ainda à margem, brilham as estrelas de Gilberto Mendonça Teles, que ordena parte da história da literatura goiana; Alaor Barbosa, de obra vasta e polifônica; Cora Coralina, a matriarca da literatura goiana; e Augusta Faro, quê, na linha de José J. Veiga, traz alento novo ao fogo do realismo fantástico.