quarta-feira, outubro 06, 2010

Tagore Biram

Tagore Biram era pseudônimo de Ubiratan Moreira, em homenagem ao poeta indiano Rabindranath Tagore.

Ubiratan Moreira nasceu em 6 de janeiro de 1958, em Olho D´Àgua, antigo distrito de Anicuns (Goiás) e hoje município de Americano do Brasil.

Sua estréia literária foi em 1981 com o livro Flauta Noturna.

Em 1985, publicou Poemas do Amor e da Ausência e viajou para Moscou, como delegado do Festival Mundial da Juventude. Na União Soviética, participou do Encontro Internacional de Jovens Escritores. Fez recitais e falou sobre o Brasil.

Teve poemas seus traduzidos para o russo e publicados em Moscou.

Em 1986, criou e presidiu o Comitê Pablo Neruda de Solidariedade ao Povo Chileno.

Em 1987, conquistou, em Goiânia, o Prêmio Cora Coralina de Poesia, com o livro O Anjo Desafinado, seu divisor de águas poéticas.

Na década de 1990, transferiu-se para Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, onde viveu por vários anos e trabalhou como editor cultural (Caderno B, do Jornal do Brasil Central) e redator-criador em agências de publicidade. Conheceu o poeta pantaneiro Manoel de Barros e dele se tornou amigo.

Em 1996 mudou-se para o Chile e ganhou o prêmio literário Cidade de Concepción, onde publicou os livros El Enderezador de Vientos e Poesia Pasajera.

O poeta rebelde e saudoso de casa faleceu em Tirúa (Chile), em 13 de junho de 1998, dez anos depois da publicação de seu segundo livro, O Anjo Desafinado.

Em Campo Grande (MS), o auditório na sede da TV Educativa foi inaugurado com o nome de Tagore Biram. Em Tirúa (Chile) um centro cultural também leva seu nome. Quando morreu em 1998, Tagore Biram deixou, inéditos, os livros, Muro de Berlim e Poemas de Santiago, dos quais, até o momento, não se sabe o paradeiro. (Valdivino Braz)

Se fosse hoje, eu não teria deixado Tagore Biram cair tão facilmente. Mas nunca conseguimos impedir uma queda, pois, quando vamos notar, a derrota já alcançou a todos nós. Mas a história humana carece de algumas quedas precoces para termos presentes a nossa fragilidade. Também quanto mais intenso o fogo mais rápido o destroçar da madeira. E ele que seria uma renovação total da poesia goiana! Dois livros que editou foram suficientes para deixar um clarão intenso. Dormi uma vez no apartamento dele em Goiânia, e umas duas noites ele passou em minha casa. É do poeta Valdivino Braz — seu mais fiel amigo, tanto em vida como de sua memória — o texto que o apresenta, publicado recentemente no Jornal Opção . O poema “El rio Tirúa”, que se encontra numa página chilena, talvez tenha sido escrito no período final de sua vida, quando ele morava naquele país. (Salomão Sousa)

Enrevista de José Godoy Garcia

Poesia e história
Essa matéria foi publicada na Edição 289 do Jornal Inverta, em 17/05/2001
Poesia e história
Por: Osmarina Portal

O poeta José Godoy Garcia, nascido em Jataí (Goiás), em 1918, filho de uma família tradicional da região - os Garcia - viveu vários momentos históricos do país. Quando criança teve contato com a Coluna Prestes; se tornou comunista em 35, mas só em 1945 entrou para o partido; no Rio freqüentou rodas literárias com Lúcio Cardoso, Rubem Braga, Solano Trindade, manteve contato com Portinari e assistiu à histórica conferência de Mário Andrade no Itamarati, no Rio de Janeiro.
Como poeta, escreveu vários livros como “Aprendiz de Feiticeiro”, “Os Dinossauros dos Sete Mares”, “A Casa do Vira Mundo”, “Araguaia Mansidão”, “Caminho de Trombas”... Sua obra fala da beleza, da simplicidade do homem, dos animais da natureza. Em entrevista ao INVERTA, fala de forma simples, natural e de modo goiano de sua vida, poesia, política e de Goiás.

A Coluna Prestes em Jataí
JG - Em Jataí vivíamos falando em revolução, era uma cidade conservadora, e se falava “Vem aí os revoltosos de Prestes”. Minha família fugiu (pensou) da Coluna Prestes. Nós fomos para Araguari, lugar que os Godoys mandavam, ficamos lá seis meses. Aí disseram: “acabou podem voltar”, quando voltamos, Siqueira Campos tomou Jataí. Um dia, eu comprava carne de manhã no açougue do seu Brás, que disse: “menino, os revoltosos estão aqui”. Olhei para o curral que tinha perto, lá estava uma porção de gaúchos. Pensei: “eles vão me matar”. Cheguei em casa tinha uns quatro ou cinco sentados conversando com minha mãe e ela servindo café para eles; no quintal, tinha mais uns dez, eles gostavam dos quintais. Minha mãe me disse: “Vai na Almeria (minha tia) e fala que os revoltosos estão aqui”. Chegando lá, estava aquela farra. Minha tia era boa de cabeça como os revoltosos. Eu brinquei com eles, desci, fui encontrar meus amigos pra falar que era amigo dos revoltosos. Chegando lá, os revoltosos estavam na maior farra com os meninos. Eles arremataram o único doce que tinha na loja e deu para os meninos, era um tal de comer cocada. Essa é a revolução de Jataí em 1926.
O comunismo
JG - Eu achava a vida extremamente amarga e que devia me preocupar com os outros. Eu tinha um amigo negro, gostava muito dele; e era muito ligado ao velho baiano, seu Bandeira, que era pião do meu pai. Liguei o comunismo como uma solução. Um dia o Américo veio me falar que tem que haver uma igualdade, tem que melhorar a vida, e isso grudou em mim. Na época eu era bem situado. Sai de Jataí e fui estudar em Uberlândia. Ela era formidável, passei para o ginásio e o diretor do ginásio era o famoso Mário Magalhães, de Pernambuco. Ele me dava aula de História, como surgiu o homem, o primeiro instrumento, os alunos cochichavam que ele era comunista. Em 1932, fizemos uma biblioteca, o primeiro livro de Jorge Amado foi vendido nela. Lá nos tornamos comunistas, em 1935, mas só em 45 entrei para o Partido.
Goiás Velho
JG - Com a derrota do movimento de 1935, fui embora para Goiás Velho, uma cidade cheia de buracos de morcego, era a maior dificuldade para viajar no tempo das águas, passamos cinco dias em Anápolis. Chegamos a Goiás Velho em um caminhão, chovia muito, ficamos um mês sem sair de casa. Numa tardinha fui para o jardim. Esse dia parecia uma coisa de magia, um paraíso, muitas moças, elas andavam em grupo de oito ou dez, uma mais bela do que a outra, fiquei doido por Goiás Velho, eu estava com 18 anos, isso em 1936.
Uberlândia era crua de cultura, já Goiás era um centro de cultura, um espanto para o tipo de Estado que era Goiás. Meu professor Ferreira fez um dos melhores dicionários. Se tinha estima, prestígio pela cultura, tinha um gabinete literário que era um centro formidável, e o povo comentava ‘fulano de tal é um grande poeta’. Nesta época estava no auge o Integralismo em Goiás, era uma coisa horrível, Pirinópolis era um peso de integralistas, Goiás Velho e Flori também. Aí fizemos o método do Liceu, onde estudava: fomos lá arrebentamos a sede deles em Goiás Velho, levamos os arquivos para a praça pública e queimamos. Foi o primeiro movimento revolucionário que participei. Nesta época eu era comunista de nhenhem.
O reacionarismo dos Caiado é antigo
JG - Bernardo Elisn estava começando, ele escrevia no jornal do Liceu, eu conto isso no meu livro “Aprendiz de Feiticeiro”, porque faço críticas ao livro do Bernardo. Nós discutíamos muito sobre seu livro “Tronco”. O mesmo foi um livro falso, pois a família dele era influenciada pelo caiadismo. Ele não quis encarar certos problemas porque o Caiado cometeu um crime abminável, fez uma matança no tronco e matou o Voli, um herói que combateu Caiado. Caiado tirava terra dia e noite, depois dizia “vocês podem revogar a lei”. Abil Voli foi em cima dele, ele era franzininho, do Norte. Bernardo não conta isso no “Tronco”.
A iniciação poética
A minha primeira poesia foi horrível, a poesia de Manoel Bandeira me influenciou muito, ela é extremamente simples Lá longe o Sertãozinho de Caxambá... Bandeira era comovente. A leitura do poeta goiano Leo Lince que me fez valorizar a poesia, a cultura e o conhecimento. Em 1938, fiquei meio desnorteado e tive um diálogo comigo mesmo, tinha que dar um rumo na minha vida. Então comecei a ler, encontrava o Bernardo e começava discutir, ele era curioso, atencioso... Comecei a publicar no “Popular”. Escrevi uma poesia como a de Manoel Bandeira que evocava Recife, e fiz evocando Goiás Velho, foi publicada com o pseudônimo de Zé da Rua. Os 99% dos assinantes eram de Goiás Velho, eles devolveram o jornal, foi uma briga desgraçada, não pude ir a Goiás por 10 anos. Quando voltei, a Consuelo Caiado me falou: “Godói, nós vamos acertar conta. O que você fez com a família de Goiás?”
Em uma das primeiras poesias que fiz, relatei um fato de Jataí, um dentista de lá deflorou uma moça que era filha de um baiano, ele queria esfolar o dentista. Dois anos depois quando retornei a Goiânia, tinha um bordel famoso da Maria Branca, ela foi personagem de Garcia Marques, na hora que eu ia entrando o baiano estava encostado na parede e lá dentro já tinha duas filhas dele. O senhor Vítor estava lá para pegar dinheiro com as filhas, olha a decomposição do ser humano, então eu fiz uma poesia extremista, vanguardista. “Caiu um olho, o homem ficou sem ele/ Caiu um dente, o homem ficou sem ele/ Caiu a filha, o homem ficou com vergonha/ Caiu a vergonha, vai pedir dinheiro emprestado no bordel”.
Entrei na Bolsa Carvalho Ramos, em 1944, era uma bolsa de divulgação que tinha na prefeitura de Goiânia. Fui influenciado também pela poesia do americano Langston Hugues. Ele era um grande poeta, então fiz “Canto ao Poeta Negro”, que li em um comício.
Stálin teria derrotado Hitler sozinho
A luta pela anistia dos presos políticos foi um movimento formidável em Goiás, foi feito através da Associação de Escritores Brasileiros. Durante as duas guerras, houve um desprezo pela teoria. Quando veio a vitória da Rússia, foi um impacto cultural na consciência da humanidade, antes a Rússia estava isolada, tivemos que fazer um movimento pela Segunda frente. Stálin teria derrotado Hitler sozinho. Hoje só se fala na matança dos judeus, quem salvou não se fala. Pedro Ludovico colocou como vitória do Estado Novo.

Muito além de limitações estéticas

O caminho pelo qual optou José Godoy Garcia fez com que se tornasse um solitário, o que é engraçado: artistas que devotam sua arte a temas sociais, à multidão, costumam ficar só. Ultrapassados pelo desencanto

JOSÉ CARLOS GUIMARÃES - Especial para o Jornal Opção

Faz tempo, tenho vontade de escrever sobre José Godoy Garcia, em minha opinião um dos três grandes nomes da poesia feita em Goiás (é irônico, mas a gente acaba circunscrevendo o artista às fronteiras políticas).

Falar nisso, o que há de mais relevante em matéria lírica, produzido nessa terra, só apareceu em meados do século passado, com a manifestação tardia do Modernismo entre nós. Foi Goiânia, mas quando, no Brasil, já se partia para a terceira geração do movimento, com seus respectivos desdobramentos formais. Aos trancos e barrancos, finalmente chegamos a 22 em 42, ano do batismo cultural da nova capital e do aparecimento da revista Oeste. Antes, o que fazíamos tinha ainda fortes impregnações românticas, praga da poesia e alegria incomensurável dos poetas menores. Poesia, com a proliferação destes, tornou-se para o cidadão comum sinônimo de coisa melosa, para não dizer melodramática, e, obviamente, sem o sentido de época do Romantismo. Um equívoco, enfim. A causa da permanência desse fenômeno, até hoje, só pode ser uma: desculpa para a incapacidade de compreender a poesia, já que o subjetivismo é uma forma de escapar inclusive das dificuldades da matéria poética. Esse pseudo-romantismo serve muito bem, portanto, a um ambiente cultural atrasado. Goiás o é, ainda, infelizmente.

Segundo esclarecimentos de Gilberto Mendonça Teles (A Poesia em Goiás), Léo Lynce não foi o primeiro modernista goiano. Nossa poesia continua dominantemente conservadora – entre parnasiana e simbolista! - até 1948, quando aparece Rio do Sono, livro de estréia de José Godoy. Se bem reconheça a influência de Bernardo Elis, possivelmente em função dos poemas de Primeira Chuva – que o levariam a Mário de Andrade e companhia -, Garcia é o primeiro a publicar um livro vasado pelas características modernistas, em Goiás, antecedendo Élis em sete anos. Sua obra, portanto, tem também um valor historiográfico inestimável, além do poético. Poeticamente, teve a função de trazer até nós, de uma vez por todas, as conquistas de 22, como se percebe claramente nesse poema (excerto de “O Elegante”):

Olhem o desmilinguido do reco-reco desrespeitando a mocinha calada no seu canto, de medo ou de vergonha,
mas com o melhor vestido no corpo
mas com a cara de virgem boa
mas com o peito belíssimo da gente pegar, o corpo saído do
banho com precaução, agorica.
Aqui e ali ousou, também, fazer como o outro Andrade, o Oswald, propugnador da “contribuição milionárias de todos os erros. Como falamos. Como somos” (cf: Manifesto da poesia pau-brasil”:
Zé Viramundo
queria uma casa.
Cum telhado? qui
casa cum telhado qui nada!
cum paredes, qui
casa cum paredes qui nada!
cum portais e janelas? Qui
portais e janelas qui nada
E ficou uma coisa doida.
Uma casa bonita, uma casa como nunca.
As gentes vinham ver a casa.
As gentes vinham de longe.
E ficou uma casa doida.
Bonita, como nunca.
Uma casa de chão e de Céu!

O poema que dá nome ao livro A Casa do Viramundo tem, decerto, um significado especial. Além das belas aliterações e das palavras “erradas”, o conteúdo revela uma mundividência toda pessoal, que aspira à liberdade em comunhão com a natureza. José Godoy Garcia é um poeta singelo, e por isso inconfundível. Mas, por favor: singelo, aqui, tem uma conotação positiva, perfeitamente condizente com o meio cultural em que surgiu, no que este meio tem de mais genuíno, de autêntico. Não tem nenhuma relação, portanto, com o pitoresco, que é tanto um meio de maquiar quanto uma forma de incompreensão. Creio que não se pode nunca, aliás, aplicar o termo goianidade a José Godoy Garcia – seria um crime de lesa-poesia. Sim, porque não estamos falando de um poeta ingênuo e folclórico, embora uma das qualidades suas seja a identificação telúrica com o homem, a paisagem e o ambiente locais:

José Aurora chegou a Posse
de sua viagem a Miracema.
E falou do gado beijando os homens nas casas.

Se a linguagem é o homem, o poema destes versos - Aqui é a Terra – traduz a nossa alma, íntimos que nós é como o chilrear dos periquitos e o cheiro de manacá. Ainda que não invista no vocabulário particular da gente goiana, à moda de Bernardo, Garcia amiúde escreve como falamos, o que é significativo: o parece ter para ele maior relevância é justamente a fala, não a escrita; a matriz, não o código. Ou seja: o material vivo, pulsante, fluido porque livre das insinuações gramaticais, não o material sintetizado e que por essa razão denuncia uma erudição estranha ao seu feitio, ao seu temperamento. É aqui, suponho, que ele se afasta de um Gilberto Mendonça Teles e de um Afonso Felix, lídimos expoentes de uma geração que radicou no segundo caminho.

O caminho pelo qual optou José Godoy Garcia fez com que se tornasse um solitário, o que é engraçado: artistas que devotam sua arte a temas sociais, à multidão, costumam ficar só. Tenho até a impressão de que, embora mais necessário do que nunca ao tipo de mundo em que vivemos – explico: como meio de não morrermos asfixiado -, ele está cada vez mais distante de nós, de nossa realidade e da juventude. Foi ultrapassado pelo desencanto. Autor de uma poesia que poderíamos já classificar de curiosa, não possui nenhum apelo visível aos olhos de uma geração egoísta, preocupada em se dar bem na vida, apenas e tão somente. É outra língua, tendente a desaparecer em função ora do idealismo, como em “A manhã está sendo feita”:

E com a mesma pontualidade com que o sol
faz a manhã,
uma outra manhã é feita nas mãos do homem.

ora da solidariedade universal, em A esperança em Angola:

A liberdade está nascendo.
Há um sol e tudo o que era vago
no coração e mente dos homens,
vai se tornando claro.
Esperança é fuzil. Angola será angolana.
Em regra, foi um cantor (e aqui apenas repito outros) das crianças, das mulheres, negros, bêbados, prostitutas, enfim, dos marginalizados. Brasigóis Felício talvez tenha razão em dizer que, por isso, ele se inspira em Walt Whitman, mas creio que há uma diferença crucial entre um e outro, apesar da temática e do coloquialismo. Enquanto o gigante norte-americano se coloca à frente da multidão, abrindo seus caminhos como alguém especial – e, note-se: auto-avaliado de maneira narcísica -, o bom poeta brasileiro se mistura aos que o seguem, como um igual. Poeta, entretanto, quer-se um homem comum, não um demiurgo. Esse cromatismo diferenciado deriva de convicções ideológicas divergentes: um era individualista, o outro o oposto disso.

Tenho absoluta certeza, hoje, que a arte tem um propósito acima de qualquer outro: transformar a si mesma perenemente, porque afinal é lúdica e seu escopo é surpreender o homem com seus achados. Numa palavra, seu maior objetivo é estético. Os maiores artistas, fatalmente, são os que perseguem este objetivo e deixam a sua marca pessoal, a sua contribuição original. Este não foi o caso de José Godoy Garcia, cujas convicções políticas obviamente talharam sua concepção artística pouco orgânica, ou pelo menos circunscrita em limites já postos, à época de sua manifestação. Ele não soube pensar a sua arte – a arte, mesma – sem a mácula, a ferida do social. Não soube, pois, separar a arte do homem, pecado partilhado por uma minoria de artistas: os demais costumam ser frios e/ou sombrios, embora possam ser tremendos.

A poesia, tantas vezes lapidar em suas formas, costuma ser pessimista, não acredita no homem – ao menos nele enquanto ser social. E esta há de ser a maior ambição de cada um de nós: acreditar no homem, apesar de tudo. Não nos resta outra alternativa, outra solução. É preciso muita grandeza, muita generosidade, para se proclamar aos quatro ventos, sem medo de se cair no ridículo, que a humanidade tem redenção, como fez o poeta José Godoy Garcia. Pensarmos bem, é uma posição de coragem; em certo sentido, uma posição heróica, que nos devolve aos mitos e ao sagrado. Hoje não, mas a poesia já teve, como na Grécia Antiga, uma função pedagógica: formar o homem e os seus valores, em sociedade. A poesia deste poeta, à parte suas possíveis limitações estéticas, engaja-se antes de tudo – antes mesmo que numa quimera chamada comunismo - nessa lição, e é útil porque nos torna melhores. As musas, com certeza, o perdoam.

JOSÉ CARLOS GUIMARÃES é crítico e escritor.

A poesia de Rio do Sono

Alaor Barbosa

Rio do Sono, o primeiro livro de poesia de José Godoy Garcia, foi editado há 31 anos pela Bolsa de Publicações Hugo de Carvalho Ramos, da Prefeitura de Goiânia. Apesar de tanto tempo passado, pouca gente o conhece fora de Goiás, e mesmo em Goiás.

Até hoje os livros publicados em Goiás não têm conseguido atravessar as fronteiras de Goiás e jazem escondidos numa espécie de ineditismo às avessas – situação de humildade muito própria dos goianos. Que-dirá em 1948, quando Goiânia ainda era uma capital sem nenhuma expressão e importância e Goiás mal deixava de ser uma terra remota e ignorada. Conta Machado de Assis, em uma das suas crônicas, que na sua época um grupo de escritores pensou em organizar uma expedição para viajar ao sertão a fim de ver se Goiás existia mesmo…

Sempre foi muito pobre e atrasada, a literatura de Goiás. Por causa do atraso econômico e do isolamento geográfico, a produção intelectual dos goianos foi até há pouco tempo muito escassa, chinfrim, imitativa e retardatária. Os movimentos da criação literária e transformação cultural chegaram sempre com muito atraso a Goiás. No tempo da colônia quase nada se produziu. Após a Independência, o que se fez tem pouca importância e significação. Goiás tem sido uma região periférica. O arcadismo de Minas e do Rio, o neoclassicismo da época da mineração, por exemplo, se manifestou em Goiás, porém com um atraso grande no tempo e trazido por um poeta talvez mineiro, talvez carioca, Bartolomeu Antônio Cordovil. O romantismo já morria em São Paulo e no Rio de Janeiro quando Félix de Bulhões o praticou em Goiás; e já morrera fazia muito tempo, quando Joaquim Bonifácio de Siqueira ainda continuava — fiel — a exercê-lo. E o Modernismo da década de 1920 só chegou a Goiás vinte anos depois, com Bernardo Élis, José Godoy Garcia e outros.

A geração de escritores e poetas que em Goiás superou o romantismo e o parnasiano apareceu, de fato, em redor de 1940.

A situação cultural de Goiás, na época do aparecimento do Rio do Sono, apresentava poucos pontos de contato com a dos centros culturais maiores São Paulo e Rio de Janeiro. Goiânia vivia um tempo diferente. Um tempo anterior. Os escritores e poetas que começaram a atuar em Goiânia, depois de 1930 e principalmente entre 1940 e 1950, enfrentaram a tarefa de superar um meio estacionado na atmosfera cultural do fim do século passado — um misto de romantismo e parnasianismo, castroalvismo e bilaquismo.

A poesia de Rio de Sono é original e forte. Constitui a primeira manifestação significativa da poesia denominada de modernista em Goiás. Poesia de lirismo e simplicidade, ternura por tudo o que existe, uma captação da essência amarga da vida, da essência alegre da vida. Aqui e ali, um tom de brincadeira e malícia, próprio dos poetas do 1922 paulista. Eis uma amostra, tirada do poema “Evocação de Maria Elvira”:

Um dia Maria Elvira me chamou no quintal de sua casa,
subiu no pé de manga,
apanhou manga
e jogou uma especialmente
para mim.

Joga, Maria Elvira ! ( A calcinha dela estava suja.)

Mas a poesia de Rio do Sono é séria diante da vida.

O autor inscreveu sob o título uma advertência: “Este livro foi escrito numa época em que não havia liberdade”. Refere-se à época da ditadura de Getúlio Vargas. Vem depois uma dedicatória: “Este livro é para MÁRIO DE ANDRADE, que morreu, mas há de ficar para sempre como lembrança de um homem; dedicado também aos outros homens, com exceção de Hitler, Mussolini, e Franco.”

A advertência e a dedicatória produzem uma impressão enganosa sobre o livro. Pensa-se que se vai ler um livro de poesia panfletária. Mas não é isso que acontece. Ao contrário. Na maioria dos poemas, Rio do Sono é repassado de lirismo, amor ao próximo, caridade, dó. Poesia toda compreensão e ternura humana, anseio de bondade, deseja de solidariedade. Poesia rica de observações psicológicas verdadeiras, essa espécie de verdades óbvias que a gente é quase tentado a consideração como a essência da poesia.
Aqui uma amostra:

A humildade dos homens que tiram retratos,
as mãos caídas,
o rosto firme, a roupa nova.

A humildade dos que devem,
A humildade dos que precisam de emprego,
a humildade dos que não esperam mais nada da vida,
acham que tudo é uma bobagem,
tiveram grandes decepções.

O poema termina assim:

Dentro, bem dentro de nós todos,
a mesma angústia, essa percepção que não se define
ao contacto das mãos, mas resiste ao vento, às chuvas,
aos dissabores e, principalmente,
aos inumeráveis equívocos a que sempre
estamos sujeitos...


Olhando a paisagem, o poeta vai definindo-a é um largo de cemitério. O poema se intitula “Paisagem gozada”:

O largo do cemitério é triste.
Você se lembra do velho Egídio?
Ele está dormindo nesta hora de sol quente.
No largo do cemitério da vida pára
quando os homens passam:
parece que os mortos, de dia, passeiam ali.
Pôr isso o largo é triste.
Ele é enorme e sofre do destino amargo de largo de cemitério.


O poeta e a noite. Vista e sentida, a noite provoca idéias, suscita sentimentos, relaciona-se como poeta:

A noite é uma mulher.
A noite quieta tem uivos
de cachorra doente.
A noite é como o silêncio
de um animal sofrendo.
A noite é pura como as mulheres
que andam à cata de homens.
A noite é a mesma criança sem rumo
como as que pedem esmolas instruídas pelos pais.
A noite é uma mulher
morta em desastre quando levava comida
para o marido operário...
A noite é um brinquedo de criança no lixo.


O poeta de Rio do Sono lembra aquela auto-definição de Carlos Drummond de Andrade:

Poeta do finito e da matéria
cantor sem piedade, sim, sem frágeis lágrimas.


As lágrimas de Godoy Garcia não são fáceis, embora a piedade esteja no fundo da sua dureza. O poeta se afirma humano:

Gosto de todos.
Mesmo aos que consideramos inimigos;
para esses tenho as minhas reservas
nunca, porém, o meu ódio.
Sou daqui,
deste mundo.


Poeta do humano, “daqui, deste mundo”. Daí falar de preferência de crianças, bêbados, prostitutas, párias, arruinados, heróis anônimos, gente humilde. Sempre sem retórica e sem ênfase. Com versos diretos e curtos. Imagens substantivas e nuas.

No poema “Mulher do Povo”, a mulher é Rosa, o que lembra Drummond:

Rosa tinha um rosto
de menina.
Rosa tinha os seios
de moça
Rosa tinha os olhos
de uma prostituta.
Rosa tinha formas
de um irmão.

E no fim:

Rosa é pura e não sabe negar
quando
homens no beco se atiram contra ela
fedendo a suor
ou mesmo quando chove muito
que o barro toma conta do corpo
e eles fedem a roupa molhada, com mistura de barro
e suor.
Ela é pura como todas as puras
e em verdade ela é mulher boa e pura
como as que se entregam aos viciados em troca do
bem-estar deles
ou mesmo para servir a um amigo em horas penosas de
sua vida.
Rosa, a mulher do povo...


Em “A Rua dos Homens” o poeta afirma que a matéria do seu canto à a vida da rua:

Eu sou o poeta
desta pobre vida que está aqui na rua.
Eu sou o poeta sem muito recurso
mas faço versos assim mesmo:
alma da multidão que está na rua.

Explica a rua e repete:

Eu sou o poeta pequeno destas ruas
e me orgulho disso; poeta deste mundo
que não aprendeu direito nem aprenderá
jamais as regras de trânsito.
Poeta destas velhas e pobres ruas,
que às vezes sobem tortas
e às vezes descem retas, profundas na noite.


Poema duro quanto à significação e perfeito na estrutura e ritmo é “Os párias”:

Caiu um olho.
O homem ficou sem ele.
Caiu um dente.
O homem ficou sem ele.
Caiu a filha.
O homem passou vergonha.
Caiu a vergonha.
Vai pedir dinheiro emprestado no bordel.


“Os párias” é famoso em Goiás. Porém, mais famoso é o poema “Espécie de balada da moça de Goiatuba”, que está para a literatura de Goiás como o poema da pedra no caminho, de Drummond, está para a literatura brasileira. É um poema popularizado. O seu ritmo e simplicidade, malícia e amoralidade já se incorporaram ao patrimônio poético dos goianos. Tal como o nome de Drummond lembra “pedra no caminho”, José de Alencar a “virgem dos lábios de mel”, Monteiro Lobato, Jeca Tatu — assim o poema da moça de Goiatuba se liga a Godoy Garcia como algo de característico.

Em Goiatuba
tem uma moça
que o coração
grande ela tem
Em Goiatuba
tem uma moça
que coração
grande ela tem.
A moça de lá
é só chamar vem.


Assim começa o poema; e com variação pequena, termina assim. É o poema clássico e típico não só da poesia de Godoy, mas da poesia moderna de Goiás. Afonso Félix de Souza e Jesus Jayme fizeram paródias desse poema, o que lhe demonstra a enorme força expressional.

Também caracteristicamente godoiano e já famoso é o poema “Tudo tem seu tempo”, captação extra e expressão perfeita das características da cidade pequena brasileira:

Tudo tem seu tempo na pequena cidade.
Tempo de casamento.
É uma fartura
de casamento.
As mocinhas novas enjeitam
as velhas se entregam.


Embora original, a poesia de Rio do Sono lembra a de alguns outros poetas contemporâneos. Pôr isso se pode afirmar que é uma poesia de seu tempo. Poesia que reflete um tipo de sensibilidade e interesse peculiar à época em que foi elaborada. O lirismo simples tem uma ressonância de Manuel Bandeira. Um certo sentimento amargo do mundo sugere Drummond. A dose de malícia e, como dizer?, ironia também evoca Drummond e Bandeira. E como não pensar em Drummond, o do “Canto ao homem do povo Charlie Chaplin”, quando se lê o “Canto ao poeta irmão de Harlem”?

Li, Langston Hughes,
eu li o teu poema “O negro fala dos rios”
E perante todos, neste instante de lutas, (não quero o silêncio, que é forma de luta de covardes),
eu quero falar de negros,
muito me comove falar dos negros.


O poeta Godoy Garcia abre a camisa ao peito e se diz filho remoto de Espanha. E canta:

A tua cantiga é de paz, Langston Hughes,
é canto de guerra.


Hughes está longe — nos Estados Unidos – e a mensagem a ele terá de percorrer uma distância enorme:

Eu te quero afirmar que esta mensagem por sim mesma
é a mais simples acenação que um homem pobre colocado no sertão
do Brasil te pode fazer.

O poeta clama pela união dos homens — união e eficiência na luta:

É preciso que suportemos os fantasmas porque senão
jamais eles serão destruídos,
de nada vale a batalha individual dos matadores de baratas,
será preciso uma desinfecção geral, poeta.

No poema “Menino Sozinho”, o quadro é de pintura e fábula:

Não há mão: há um toco de mão
Vem do campo onde ele mora montado em seu cavalo,
Vem no trote mole, desenhado curvas através das moradas, pedindo a sua esmola.
De longe, quando avista os meninos brincando no largo,
ele já apressa a marcha, depois fica ali parado,
esquecido, olhando os meninos.


O menino faz um intervalo curto e prudente na faina de mendigar, e se vai.

Quando volta, de longe ainda volve os olhos e observa
a garotada que vai pela noite a dentro,
despreocupada, como multidão de pássaros
no céu limpo e azul.


O poeta atravessa uma época difícil, dura: o mundo sofre, o mundo geme: uma guerra assola e calcina o mundo, desfigura a terra, a boa terra dos homens — a guerra destrói as cidade e as plantações dos homens. A época é de crueldade lá fora, lá longe: os nazista dominaram a Alemanha e cresceram para cima do resto da Europa, cresceram para a Violência organizada cientificamente. O poeta mora afastado do teatro da violência: está em Goiás, e somente sabe da Violência organizada cientificamente. O poeta mora afastado do teatro da violência: está em Goiás, somente sabe da Violência porque os jornais contam, o rádio noticia, as informações circular e chegam até este interior longínquo do Brasil. O poeta é contra a Violência. Quando a França caiu, o poeta gravou o momento amargo:

Eu escrevo o meu verso no escuro.
Ele traz o mesmo som do escuro.
Ele conserva minha alma.
Sei que a mão traça no rude papel as palavras mais rudes
trágicas palavras sem pontuação
nos caminhos certos.
Há uma chaga negra que desce,
entra pela pauta:
são as palavras que se consomem
ante a treva do papel.
Sei que este é o meu verso mais puro
Como a troca de olhar no momento exato da morte,
meu verso fixou este momento, esta insônia, estse pensamentos e estas quatro horas da manhã, silenciosas e trágicas.

O poema “Verdade” tem um tom de fábula imemorial e perene:

A criança foi buscar o mar
e trouxe o mar, brincando.


O mar foi então arrumado nas covas já preparadas; a lua foi trazida; houve conseqüências:

O mar estava fazendo as pazes com as novas terras
e olhava para as crianças com muita gratidão porque
até o próprio mar não acreditava
e agora ele dava graças por estar gozando da nova vida.

O lirismo de Godoy Garcia tem muita força:

Quando uma moça dorme
é ver coelinho dormindo
a gente pensa muita coisa
e ri dos pensamentos...

Outra amostra:

Quando as noites mais claras
são misericórdia para os que amam,
quando nós nos conhecemos intimamente,
quando são límpidas as noites, irmã,
a vida se torna generosa como o nascer
de broto na hora estranha da madrugada.
Quando as noites são tristes e velhas,
a resignação e a dignidade de todos
repousam no silêncio selvagem
das almas desesperadas.
Oh, irmã, nós dois caminharemos tristes, nós dois seremos como cegos unidos,
sem esquecer que tão logo seja possível
lutarmos pela vida, pelos homens, irmã.


A poesia de Rio do Sono é íntima das coisas perenes — o ar, a madrugada, a manhã, a noite, a mocidade, a velhice, o amor, a morte, a água, o mar, os rios, a coragem, a dignidade, a luta, a bondade, o tempo... É uma poesia do brilho de orvalho da verdade mais corriqueira e simples. Poesia de poucas imagens e metáforas, ordena-se como uma seqüência — em ritmo quase de prosa — de verdades coordenadas com energia e concisão: beleza concentrada. O verso mais simples é um achado revelador, uma informação inaugural, que surpreende e entusiasma. É a voz de um poeta sentidor do mundo, espiador do mundo, compreensivo e amoroso a todas as coisas. Poesia de sentimento sertanejo, sim, mas de expressão universal. Uma voz de Goiás no mundo.