quinta-feira, agosto 20, 2009

A obra aberta: nova escola literária

A obra aberta: nova escola literária

ou O código estético da iconoclastia

Mário Jorge Bechepeche *

Assim, pelo título acima, se pode inferir um dos suportes temáticos, dos muitos que são comuns e determinantes na obra geral de Brasigóis Felício, desde o início de sua prosa e verso. A fim de que não se estenda além de uma crítica simétrica (hoje, ele faz parte dos que merecem análise desdobrada, como já feito a Miguel Jorge, Gilberto Mendonça Teles, Gabriel Nascente, etc, por outros críticos) o enfileiramento das características de sua criação literária se fará pelo ponto de vista de suportes estéticos, situando-se, portanto, fora do tempo e da cronologia, irrefutáveis e indiferentes a quaisquer filosofias.

Como apontado no título, o pique ostentórico da vespa farpejante e demolidor obstinado e revel dardeja tanto em Literatura Contemporânea em Goiás (1975), crítica literária de arestas incandescentes, como em Zumbi Incendiado , poema de gullarismo político-social, bem como em A marca de Caim (1984), ficção em fúria iconoclasta e arroubos de furacão. Escorrem-lhe das páginas o idealismo quixotesco que expele lavas vulcânicas calcinadoras e impenitentes, querendo, como soe na idade, ainda de pureza das ideologias humanitárias, arrostar o caos e as tempestades vigentes, que supliciam e escravizam.

De passagem, a utilização de novos recursos literários, que seriam ser os novos filetes da chamada Obra Aberta, já neste livro é uma ampla bagagem de vertentes, em inesgotável corolário ali constante: realismo literário, intertextuação, arrepanhamento (que ele depois fez como uma das marcas características de suas crônicas), miscelânia de gêneros, etc. Quem quiser esclarecimentos sobre estas características de que se constitui a Obra Aberta, que o mundo inteiro hoje usa como verdadeira escola literária, telefone para 3281-13-91.

Aliás, dos seus contemporâneos, ele é o que porta a maior gama dessas características em conjunto, ainda nas décadas de 1970 e 1980, uma vez que apenas alguns autores incursionavam na modernidade abertista que Umberto Eco vinha pregando desde a década de cinqüenta. Entre estes, por exemplo: 1. José Mendonça Teles Contítulos, 1972 (conto feito pela combinação de títulos de contos, ou conto bibliográfico, um farto exemplo de intertextuação, e Via sacra, 1978, em que se mostrava, além da diagramação visual concretista na prosa, realismo fantástico que seria não só em Goiás, mas em todo o Brasil, o ópio das gerações da década de 1990.

  1. Miguel Jorge (tanto que se tem a dizer!), em “Amor: poldro que se doma, fogo de outra chama – (1996) expõe, à larga mano, uma extensa intertextuação, usando poesia no teatro e em Avarmas (1980), além do realismo fantástico, inclui a septação dos contos com subtítulos, interiorização e velamento expressional de Kafka e formatações textos à Joyce. 3. Maria Helena Chein – com testemunho do prefácio de Nelly Alves de Almeida, introduz a “corrente de pensamento”, modificada (os modelos clássicos eram Proust, Catherine Mansfield, Virgínica Wolf, Breno Accioly, Clarice Lispector, Elisa Lispector, etc), com Do olhar e do querer, enquanto que Atiço Vilas-Boas da Mota, prefaciando, assinala em Joana e os três pecados, características do contrapondo de Maria Helena Chein. O contraponto clássico tem história que remonta a Petrônio (Satiricom) e foi introduzido no Brasil por Érico Veríssimo.

4. Alaor Barbosa – que se revelaria um magistral conciliador de temáticas, com soberbo panorama de seres e coisas, ora sertanista, ora urbano, em Rios da coragem, sensacionalmente capaz de nos remeter, ao mesmo tempo, ao visual nitente de Monteiro Lobato ou ao intimismo cogitante de um Machado de Assis – em livros anteriores já colocara dois aspectos da Obra Aberta: o balzaquismo e a autopersonagem.

5. Jesus de Aquino Jayme – com Viagem das chuvas (1972) trouxe, aliás um dos mais difíceis caracteres da Obra Aberta, a Criptografia, que estabeleceu na linguagem novelada de Saramago, o suporte magistral de Levantado do chão. 5. Antônio José de Moura – (estudos especiais) com Notícias da terra (1978) de recorte ritualístico nos contos – mostra a técnica operativa, além de criptografia, intertextualização.

Esta resenha, muito sintética, visa apenas lembrar que Brasigóis Felício, mesmo naqueles anos de 70 e 80, praticamente usou de todos aqueles recursos mencionados de um (1) a seis(6), parcialmente usados ainda pelos seus coevos, só não utilizando outro recurso indicador – o praxismo, que Heleno Godoy, Luís Araújo, Carlos Fernando Magalhães, Carlos Rodrigues Brandão (só interessam os de Goiás) instauraram aqui e produziram, sob a égide das conquistas lingüísticas que são 100% a base praxista, - páginas de excepcional relevância no contexto nacional.

Desde modo, o universo criador de Brasigóis Felício, realmente por ser crítico literário (como Gilberto Mendonça Teles0 e autor de poesia e ficção (prosa), abria-se em perspectivas inumeráveis. Desde Monólogos da angústia (1975) a visão existencialista de um mundo desumano e de feroz cariátide de hiena até a última gota de sangue, fazia arder nele uma linguagem de nuances diversificadas em estilização, dependendo da temática de enfoque: urbano, pessoal ou rural, mas sempre pontificando a impressão de que em seus textos, em vez de palavras, aflora um desfile de ossuários funâmbulos e convulsos.

Esta mundividência já era vazada no virtuosismo de mananciais que iriam fazer a Obra Aberta (nos itens já mencionados e em outros), como o cânone exponencial do “nouveau romam” – o corte brusco na linearidade, pelo estratagema de deixar ao leitor a complementação do ciclo normal do conto tradicional, seja em qualquer de sua fase, ora sem início ou meio, ora sem fim. Em contos como “No outro dia”, “Já vou, já vou, ser cedo” e em “O senhor compreende?”, ele já o começa pelo fim. Em “Insônia”, é surrealista. Neste incrível “Você não está com câncer, está?”, o autor malbarata a ordem de tal maneira que desfila as frases em torvelinho, dando a impressão que o início, meio, fim, vêm todos de uma vez, como numa rodopiante piorra mágica...

Mas, há mais: usa o contraponto no sentido convencional – o de Aldous Huxley e Érico Veríssimo – em “Cantiga de roda” e, ao mesmo tempo, estruturalmente calcado no abertismo, faz arrepanhamento, como em suas crônicas. Em relação ao proselitismo, sabe-se que na influência de mestres como modelo para outros poetas é um fato aberrantemente iluminista, inegável em todos os versejadores de todas as épocas do mundo, desde Homero. Em Brasigóis Felício se palmilham dicção entre Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto; retratação de temas à la oralidade de Bernardo Elis.

Pela lógica esperada de seu sentimento antiburguês de desmistificação não se conduziu ao estruturalismo formal, paroxístico, tendo conservado o discursivo, o verso curto com resolução de uma busca de sintetismo latinista (por exemplo, empregando “doendo” ao invés de “fazer doer”, porquanto ali “doendo” não é gerúndio). Este senso de latinização da frase gera conotação estética que diríamos o poeta passar as altas horas da noite pincelando os seus versos, e à medida que mais amadurece, em publicações posteriores, veste o poema de um péplum vestal de linguagem personalizada nos rescaldos das sondagens introspectivas, com mais compactação e densidade no bojo.

Não recusou as ofertas da Obra Aberta em seus poemas, como já havia estampado em sua prosa. Também desfilam: realismo fantástico “Zaratustra, sangrando com Beethoven”, “A surdez do silêncio”, etc, bem como o autobiografismo, autopersonagem, ficção do real, intertextuação (aliás, até auto-intertextuação), atemporalidade pelo hermetismo, como no poema “Germinação geral”. Captam-se, ainda, bafejos e responsos do açulamento da geração de 45. Em síntese: seguramente podemos ter, pelo menos, quarenta poemas (tenho-lhes os títulos) compondo uma excelente antologia, mas não compulsei todos os seus livros de poesia. Mas já sabemos: o panorama da literatura não pode prescindir de Brasigóis Felício – entre nós e no Brasil.

* Mário Jorge Bechepeche é médico

e crítico literário.

segunda-feira, junho 15, 2009

Um drible na alquimia - Yêda Schmaltz

por Brasigóis Felício

(Faz algum tempo que, no mês de maio, a poetisa Yêda Schmaltz foi embora deste mundo (e, sabemos, muito contra sua vontade). Deixou uma obra vasta e importante, embora pouco estudada por aqui. Não temos olhar para nós mesmos, além de que, na província boiana, alguns criticocratas, dentro e fora das universidades, insistem em torcer seus narizes empinadinhos para o que se escreve em nossas plagas – a não ser, é claro, para conceder votos e laudatários encômios a coleguinhas de grupelhos de literatos GENiais. Quando lançou Vrum, em formato de bolso, causou espanto e incompreensão auto-suficiente ou arrogante. Pela ousadia formal, e também pela incompreensão conteudística. Por criticocratas levianos foi acusada de ser anti-feminista – logo ela, que não suportava a hipocrisia da confortável infelicidade doméstica em que viviam (vivem) algumas de suas amigas do poetariado anhanguerino. Vai nesta Bula este texto em homenagem à grande poesia de Yêda:

“A mitologia é a musica. É a musica da imaginação, inspirada nas energias do corpo. Uma vez um mestre zen parou diante de seus discípulos, prestes a proferir um sermão. No instante em que ele ia abrir a boca, um pássaro cantou. E ele disse: “O sermão já foi proferido”. J. Campbell

“Obscura poesia,/independente de toda e qualquer realidade!/Música: dou meu estado de alma de beber/como num beijo — pura Magia.” Y.Schmaltz

Sobre ser Yêda Schmaltz uma das mais altas vozes femininas da poesia brasileira é fato sabido e consabido por muita gente séria e boa, por estes Brasis afora, e também no exterior. Conheço pouca gente, como ela tão comprometida com o oficio de escrever literatura. Antes de aposentar-se como professora do Instituto de Artes da UFG, já conquistara, por seu talento, e uma obra sólida, quase toda premiada a admiração tanto do leitorado quanto da crítica literária. Uma vez fora da cátedra, entregou-se de corpo e alma ao que mais gosta e sabe fazer: escrever poesia.

Yêda tem olho de lince, lucidez e vertigem de vidente, tanto na prosa quanto na poesia. Sua prosa impressiona por sua lancinante e corajosa penetração nos caminhos e descaminhos do existir humano, revela e desnuda os mistérios do Ser Feminino, fato reconhecido por ensaístas respeitáveis. Dos Caminhos de mim com que estreou na poesia, até este instigante, “fulgaz” e vertiginoso Vrum, um drible seco e veloz, na arte de poetar, muita magia poética rolou, no rio heraclitiano de sua re-criadora indagação do mistério mitológico, e de seu corajoso e visceral mergulho na perigosa e fascinante questão da sexualidade feminina.

A quem tenha lido Prometeu americano, Eros, e Rayon,não surpreenderá sua habilidade no re-inventar palavras, re-nomear coisas, uma vez sabendo-se que alquimista da palavra Yêda sempre foi; só que, a cada instante de seu ofício de “sagaranar”, ou de inventar Sagaranas, liberta, em forma de messe, ou de prece, o viço e o vício de sua lavra de palavras. Assim sendo, permite-se grafar palavras que inventa: óbrulo e malovro.

Vrum, poema único, retoma uma recorrência temática, presente na prosa e na poesia Yêdeana, proclamando, quase sempre com uma refinada ironia ou humor negro, a questão essencial, com que a maioria das pessoas nega o corpo e se recusa entrar em corpo a corpo com a vida, em seu medo de viver verdadeiramente. Tudo no viver transborda e irradia o esplendor do poético e a onipresente vitalidade dos mitos. O ódio ao vivo, a avidez pelo poder e o medo de ser, é que revela as pessoas encouraçadas. Para Reich, Jesus Cristo foi vítima da peste emocional ( o instinto assassino ), mais vivo e mais ameaçador hoje do que nunca o foi no passado da história humana. E onde entra a poesia em tudo isto? Mesmo sabendo que ela (a poesia) não serve para nada, não podemos viver sem seu esplendor e fascínio.

A poesia (a busca da beleza) é a revelação do Ser: no verso ou no reverso da moenda dos dias, sua plenitude se cumpre e se legitima na vida vivida, na pele das palavra, nos rios da coragem, e no mar aberto do Encontro. O Ser só recupera sua imagem perdida na existência que se cumpre e se gasta até o osso: “ Ah! Misteriosa e obscura poesia/ independente de qualquer realidade/ música/ dou meu estado de alma para beber/ como num beijo – pura Magia”. Deus não joga dados, nem fala aos mortos-vivos. Onde se nasce, onde se cresce, no corpo vivo da Vida – aí Deus se manifesta, e revela a sua face. Mesmo sabendo que fazer poesia é um brincar com palavras, na busca impossível da palavra essencial – o silêncio intraduzível, o poeta escreve. E o faz por não poder brincar de ciranda, ou jogar pião, com as crianças. E se

OM (ou AUM) é o som primordial da vida que não teve princípio nem terá fim, Rosebud é a palavra que falta – não nos poderes do cidadão Kane, mas no quebra cabeça dos dias e no labirinto da existência humana.

Se tudo o que é fora é dentro, tudo é em cima como é em baixo, a mentira pode ser a verdade, ou vice-versa, uma vez que, segundo mestre Quintana, a mentira é uma verdade que esqueceu de acontecer. O efêmero instante que passa, a palavra imarcessível, que sempre nos escapa, o som de mantra, que daria completude ao Ser, é o objeto da busca de todos os poetas e artistas. E se “ há um poema que jamais chega a palavra”, há uma palavra perdida, que jamais se revela no corpo vivo da poesia. Na paixão e no esplendor de estar vivo na carne, os poetas buscam a impossível maestria na magia da criação. O Vrum, tão fugaz e tão efêmero, voa fora do estreito limite das horas e minutos, a matéria infinita que elabora a nossa pobre eternidade.

Certo, com a modernidade os poetas perderam o halo da santidade, mas conservaram vestígios do gesto subversivo de Prometeu, e como ladrões do fogo da criação, buscam cantar o esplendor de viver, sem jamais deixar de proclamar seu tempo e sua pátria. São desta lucidez e desta dureza na ternura, a raça dos verdadeiros artistas. E até que seja definitivamente derrotado o instinto anti-vida e a peste emocional, que a tantos condena ‘a morte em vida, terá a humanidade que empreender a maior e a mais gloriosa de suas façanhas: a conquista de seu próprio coração.

Com este Vrum, tão cristalino e profundo, mas ao mesmo tempo rápido ou demais, ou desconcertante, Yêda deu um drible seco na alquimia: Uma finta curta, de futebol de salão. E o fez apoiada em Joseph Campbell , que foi uma das maiores autoridades no campo da mitologia em nosso século, e também em Carl Jung. A obra de Campbell estuda, dentre outras, as mitologias primitiva, oriental, ocidental e criativa. Segundo ele o que estamos procurando é uma experiência de estar vivos, de modo que nossas experiências de vida, no plano puramente físico, tenham ressonância no interior de nosso ser. E diz mais: O homem não deveria estar a serviço da sociedade, esta sim é que deveria estar a serviço do homem. A mitologia consiste nas histórias sobre a sabedoria de vida. O homem não deve submeter-se aos poderes de fora, mas subjugá-los, como diz a poeta: escrever sobre algo é pura deficiência — nossa felicidade é maior do que só isso.

Yêda Schmaltz escreveu um livro para todos, mas especialmente para os iniciados. Explico: todos hão de ler, compreender e amar o seu libelo de buscadora da palavra que não existe; mas somente alguns conseguirão penetrar profundamente no sentido de seus versos — os criadores, principalmente os poetas, que buscam a palavra inexistente e sofrem o desespero de jamais encontrá-la; os conhecedores de mitologia, de psicologia e da obra de J. Campbell, um dos maiores estudiosos das mitologias do século, já que nossa autora o cita de forma cabalística abrindo as asas do seu vrôo de vrum, o que, além de nos encaminhar ao autor, delimita o livro VRUM como “o livro mítico dos míticos” no contexto da seqüência de uma obra na qual Yêda recriou mitos variados através de livros diversos; pois bem, percebe-se aqui estabelecido um centro catalisador, pois VRUM então se pretende junção de todos os mitos, na medida em que desenvolve o tema do significado profundo da própria mitologia.

Sinto-me à vontade para tentar compreender, pelo menos em parte, este texto, desde que passei a vida toda como poeta buscando essa palavra que não se encontra e também porque tenho a sorte de possuir alguma coisa da obra de Campbell, o autor que inspirou a poeta a escrever sobre o supremo mistério do ser que está além de todas as categorias de pensamento. Como Kant disse, a coisa em si é não-coisa. Transcende a coisidade e vai além de tudo o que poderia ser pensado.

As melhores coisas não podem ser ditas porque transcendem o pensamento. “O verdadeiro artista é aquele que aprendeu a reconhecer e a expressar o que Joyce chamou de “radiância” de todas as coisas, como epifania ou revelação da sua verdade.” Corroborando com estas idéias, nossa autora escreve: ...me livro/da camisa-de-força do alfabeto,/com seus inúteis caracteres. Visito/outras fontes(...)que apontam (...)/uma só imagem: cinco pontas no poente, /forma traduzindo-me num plausível hieróglifo. E afirma em seguida: Pensar por imagens, a arte que perdemos. Assim fazendo, remete-nos à arte visual dos primitivos, seus desenhos e suas mandalas repletas da maior significação. A imagem visual comunica mais do que as línguas que separam os homens: para entender um quadro de Van Gogh ninguém precisa falar holandês.

É notória a troca do eu-lírico realizada por Yêda em Vrum, pois ela escreveu o poema no masculino, é o poeta que fala: Tudo é mais seu, amigo, que daquela/ de onde nasceram os meus sofrimentos/ e meus improvisos. (Grifos nossos.) Desta feita, a autora não pretende fazer uma poesia separada “de mulher”, ou feminine ou feminist ou female, como, lembrando o ensaio de E. Showalter, citou Gian Luigi de Rosa em seu texto; é maior do que isto porque não somente expressa a busca da identidade feminina através da forma literária, mas a busca do poeta de modo geral, tanto do escritor como da escritora. É o poeta que Y. Schmaltz tem dentro de si que fala. É poesia só, independente de sexo. Algo maior que defender os segregados homossexuais, negros e mulheres, coisa que a autora já tanto realizou em sua obra.

Sabemos que Yêda foi uma estudiosa de psicologia e mitologia. Ela sabe que somente a leitura dos grandes psicanalistas como Freud, Lacan e Jung não vai ajudar ninguém a encontrar seu eu-interior e nem autorizar intempestivas analises plantadas nos chavões “complexo de Édipo, de Electra” ou o que o valha. Sabe que qualquer que deseje compreender a alma do outro, deve primeiro fazer o intenso estudo do si-mesmo, que envolve anos de auto-análise.

J.C. ilustra isto: “Nunca fiz aquilo que queria, em toda a minha vida”, afirma alguém. Este é um homem que nunca perseguiu a sua bem-aventurança. Poetas são aqueles que adotaram, como profissão e como estilo de vida, o estarem em contato com a própria bem-aventurança. A maioria das pessoas se preocupa com outras coisas. (...) A história que temos no Ocidente, na medida em que se baseia na Bíblia e pertence ao primeiro milênio antes de Cristo, não está de acordo nem com nossa concepção do universo, nem com nossa concepção da dignidade humana; pertence a algum outro lugar. (...) O amor não tem nada a ver com a ordem social. É uma experiência espiritual mais elevada do que aquela do matrimônio socialmente organizado” – é sobre isto que Yêda escreve: as pessoas tem listras e costumam acreditar/ que para exercerem o afeto,/ precisam providenciar um documento — / essas coisas de alianças, canudos,/ certificado de propriedade. Ela sabe que a vida começa com os atos de desobediência — comer o fruto proibido é o que deu consciência ao homem e propiciou mudanças.

Os versos a seguir bem ilustram esta ideologia: A vida não acontece no pensamento. Nem no poema./ Beijos escritos não dão prazer algum./ Vida é atitude. Eu sou o que eu faço./ Você é o que faz. Feliz ou infelizmente./ Se nada faz, está morto. Praxis./ Schmaltz propaga a ideologia do mitólogo também nos versos: Palavra nenhuma traduz o nosso sonho./ Poema nenhum basta a nossa vida. Ou então nos versos finais do poema: Limitamos tudo isso, se isso é tudo,/ na medida exata em que pensamos nele./ Fica indizível, do significado, a essência./ O silêncio é que me diz e não obtém/ nunca a resposta./

O que se deixa de escrever, é o sublime., pois o autor afirma que você pode encontrar a Palavra em você mesmo e que tudo o que é transitório não é senão uma referência metafórica, o que todos somos. E continua: as pessoas, por toda a parte, morrem por metáforas. Mas quando você realmente capta o som “AUM”, o som do mistério da palavra em todos os lugares, então você não precisa sair à procura de alguma coisa e morrer por ela, porque é certo que ela está à sua volta. Aquiete-se apenas, veja-a, experimente-a e conheça-a .

Essa é uma experiência culminante. “AUM” é uma palavra que representa aos nossos ouvidos aquele som da energia do universo, da qual todas as coisas são manifestações. Quando você pronuncia adequadamente todos os sons vocálicos estão incluídos na pronúncia. As consoantes são tomadas aqui simplesmente como interrupções do som vocálico essencial. Todas as palavras são, portanto, fragmentos de AUM, assim como todas as imagens são fragmentos da Forma das formas. AUM é um som simbólico que coloca você em contato com o ser reverberante que é o universo.

É então que Campbell encerra uma de suas entrevistas, afirmando que as palavras são sempre qualificações e limitações (Palavras limitam, qualificam./ Não quero mais escrever, porque a palavra/ não consegue refletir meu sentimento.): ... e todos nós, fracos seres humanos, acabamos ficando com essa linguagem miserável, embora bela, mas limitada para se tentar descrever... eis por que é uma experiência culminante romper com tudo isso, às vezes e perceber...


A mitologia! “A canção do universo — música que nós dançamos mesmo quando não somos capazes de reconhecer a melodia.”

sábado, junho 13, 2009

José Godoy Garcia, uma poeta solar

por Brasigóis Felício

Ninguém foi mais irmão de Walt Whitman, na adoração ao sol, e a todas as vidas do que o poeta José Godoy Garcia; amava e celebrava tudo o que via como só Walt, o saltimbanco de estrelas, foi capaz de amar e celebrar. Escrevi, em homenagem a José Godoy - coração-da-chuva, humilde e digno como as laranjas, o poema Passarinhando: “Aos que viveram para atravancar seu caminho/o poeta respondeu vivendo à toa, à toa/ sem pressa de morrer/de tédio ou de tristeza./E por saber que só existe a vida/a menor dentro da maior/e todas dentro do espírito divino,/ o poeta não conheceu a solidão./ Os que atravancaram os caminhos do poeta passarão/ o que viveu como um passarinho/ passarinhará/ alegre e liberto/pelos caminhos divinos/ com a leveza “de um menino/ que confia em outro menino”. Poeta Godoy: nos infinitos orbes do vaso universo fica à vontade com Walt, teu companheiro solar. “Nada é ou pode ser perdido/Impulso, impulso e mais impulso/sobre o impulso criador do mundo/ Saindo da sombra, semelhantes opostos avançam... sempre a substância do crescimento,/ sempre uma rede de identidade... sempre diferenciação/ sempre uma rede de reprodução de Vida”.

Tive o privilégio de ser um dos grandes amigos goianos de José Godoy. Eu e uns poucos mais: Cairo Campos, Haroldo de Brito, Iberê Monteiro, Domingos Félix de Sousa, Taylor Oriente, Gabriel Nascente, Yêda Schmaltz, Darcy França Denófrio, Luiz de Aquino, Antônio José de Moura. Lembro como se fosse hoje: Cairo Campos, em um bar, declamando, de memória, poemas inteiros de Zé da Chuva, seu grande amigo e poeta preferido. Dele guardo muitas cartas, irreverentes, alegres, com desenhos de palhaços, circo, um Carlitos que era ele mesmo - toscas figuras, a que o poeta dava nomes, temperamentos. Ora assinava Zé da chuva, ou Zé-chuvarada da dezembro. Certo, por sua acendrada fidelidade ao marxismo, muitas vezes revela-se dogmático...mas, fazer o que? Só Ele poderia como Walt, seu poeta adorado, dirigir-se a uma prostituta, com estas palavras: “Tranqüiliza-te à vontade comigo:/ eu sou Walt Whitman/ generoso e pletórico como a natureza/ Enquanto o sol não te excluir,/ eu não te excluirei./Enquanto as águas não se recusarem a fremir para ti e as folhas a fremir para ti,/as minhas palavras não se recusarão a fremir e a ressoar para ti./ (...) Para que não me esqueças, durante minha ausência,/eu te saúdo com este expressivo olhar/”.

José Godoy Garcia às vezes se contradizia, mas tinha direito a isto: por ser amplo, muitos em um, continha multidões em seus versos de homem apaixonado pela vida. Na apresentação de O flautista e o mundo sol verde e vermelho o poeta pede que o leitor não abra o livro ao acaso: Há uma pedra bruta, uma sede de ser igual a música, uma árvore, um corpo. Há aqui um velho e um menino a caminho da montanha. Há um tocador de flauta. Há aqui uma epopéia e uma rapsódia, se você também sabe sonhar a terra com os seres e caminhos. Os sonhos. Os sonhos”. Godoy teve no poeta norte-americano Walt Whitman sua grande fonte de inspiração. Pode-se dizer que imitou seu estilo largo e pletórico, telúrico e solidário a tudo o que vive. A atmosfera dos poemas do poeta da democracia impreganaram toda a produção poética de Godoy, havendo no entanto uma diferença básica: Whitman, foi homem dotado de consciência cósmica, ou seja, vivia na certeza da unidade e divindade de tudo o que vive. JGG não alcançou tal vastidão. Devotou seu amor ao homem enquanto ser social, via na utopia do comunismo a realização de sua dignidade e liberdade – idealização que veio a mostrar-se uma ilusão trágica. Nem a denúncia dos crimes de Stálin fez que renunciasse à ilusão que moveu sonhos e versos de sua vida.

Foi poeta, sonhou, lutou e amou na vida, quem teve a visão geral de uma gente humilde e digna da vida: “A humildade dos homens que tiram retratos/. (...) A humildade dos que estão morrendo,/ a humildade dos que dão os primeiros passos na vida,/ a humildade do sapateiro que encontra o freguês na rua,/ a humildade do funcionário que cumprimenta o chefe no baile./ A humildade dos que passam na rua e voltam para dar uma esmola./ A humildade dos que não sabem se expressar/e uma palavra às vezes dá desgosto./ (...) A humildade das mulheres de má vida/ que vão ao cinema e se portam honradamente,/passam pelas garotas de dezessete anos/e sentem-se imundas.../ Dentro, bem dentro de todos,/ a mesma angústia, essa percepção que não se define/ ao contato das mãos, mas resiste ao vento, às chuvas, aos equívocos”.

Yêda Schmaltz: uma estrela da poesia

Brasigóis Felício *

Quem não tenha uma visão limitada pelo colonialismo cultural interno, e tenha acompanhado a trajetória da poesia brasileira, nas últimas décadas, estudando a produção verificada não só no eixo Rio São Paulo, concluirá o que já sabe boa parte da crítica e dos apreciadores da boa poesia: que Yêda Schmaltz é sem dúvida uma das vozes líricas mais expressivas, dentre as que se despontaram, no esfera da modernidade. Desde sua estréia literária, com a obra Caminhos de Mim, até Alfenin, em que poetiza a nossa história, nossa cultura e costumes, sua obra veio crescendo qualitativamente, de livro para livro, revelando uma crescente maturidade no tocante ao domínio dos recursos da poética, a par de uma visão integradora, de cortante ironia e lucidez, dirigidas ao universo do existir humano.

É impressionante a intensidade apaixonada com que esta grande escritora e poetisa brasileira entregou-se a seu ofício. Já antes de aposentar-se do magistério, em que ensinou, com que ensinou história da arte na UFG, com notável competência e sensibilidade, imprimiu alta voltagem poética às suas produções, refletindo-se no que escrevia a alquimia secreta da transformação de sua visão de mundo, não mais em sintonia com a diáfana leveza dos versos de Ariadne, a mulher que espera, mas com a tensão e força da mulher criadora que não renuncia ao combate, mesmo sabendo que sua coragem em desafiar o sistema em que se cevam os normóides resultaria em fria hostilidade ou hipócrita aceitação social, por parte de quem, não tendo a audácia de roubar aos deuses o fogo da sabedoria, não gastam a vida até o osso, comprazendo-se viver e criar de maneira morna, se bem que mortal e mortífera, com o poder de destruição que tem a energia estagnada.

Durante décadas, em sua residência (a casa da poesia) no Bairro Feliz, Yêda Schmaltz dedicou-se a produzir uma das mais refinadas e substanciais produções poéticas deste país. Sua obra, de valor reconhecido pelos que sabem quem é quem na poesia brasileira produzida dos anos 70 até nossos dias, só não obteve a consagração nacional (em termos de público), que merece, e haverá de ter um dia, por não ter sido publicada com uma grande editora, que a tornasse disponível em todas as livrarias do país. Não obstante isto, a crítica nacional e internacional reconheceram a força de sua linguagem e sensibilidade.

Tendo sido um dínamo, a produzir incansavelmente uma das melhores poesias já escritas por homens e mulheres, neste país, Yêda Schmaltz deixou profundas marcas no tempo e no espaço geográfico em que viveu e trabalhou. Sua personalidade forte, sua franqueza e a centelha da inteligência, que acende a chama criadora de sua poesia forte e expressiva, serão a cada vez mais lembradas, quanto mais passar o tempo. Pois este é o destino que sempre alcançam os artistas que criam perigosamente, em vertigens de falésias, ao contrário dos que escrevem anedotas ou versalhadas lacrimosas, em mediocridade triunfante, ou em mornidão de pântano. Pois o fulgor de supernova de sua fecunda lavra de signos tem verdade humana, além de engenho e arte, para sobreviver ao tempo e à vala comum onde são atiradas as obras que não foram iluminadas pela aura poderosa, em que se tornam parceiros dos deuses, os que se fizeram gênios.

Jesus Barros Boquady

Este blog foi criado para divulgar os grandes valores da literatura goiana e aceitarei contribuições que possa somar-se ao meu esforço para dar transparência aos autores de Goiás.
Há algum tempo eu deixei este blog esquecido na virtualidade. Ao voltar a Goiânia, conversas com os amigos Vassil Oliveira e Brasigóis Felício me incentivaram a reabilitá-lo. E foi com surpresa que encontrei um comentário da filha de Jesus Barros Boquady (Maria Mazarelo Boquadi) sobre uma referência que fizemos a este grande poeta goiano, que tive oportunidade de encontrar várias vezes nos corredores da Câmara dos Deputados. Quando digo no meu artigo que ele morreu totalmente esquecido, eu não me refiro àqueles que o amavam como eu. Eu queria me referir à crítica literária, que poderia ter tratado melhor a sua obra. Não convivi intimamente com Jesus Barros Boquady, pois não tive tempo para isso. Conheci-o num tempo em que dividia meu tempo curto para a literatura com o trabalho no mesmo corredor que ele. Desejo amplo conhecimento da poesia de Jesus Barros Boquady e vou trabalhar para isso. Precisamos publicar seus poemas inéditos. Abraços aos seus familiares e a todos que amam a poesia de Jesus Barros Boquady.

BOI-DE-CARRO

Mas um boi está guardado:
é boi de carro-de-boi
ou vai rodar as moendas
do engenho que lembra o tempo.

Não inteiro, esse foi sonso
vive no mundo vagando.
Os olhos e o coração
de boi castrado, que são?

Nas nuvens desaparece
o equilíbrio do carro
que vem do grito das rodas,
girando pelo infinito.

A glória de Cora Coralina


por Brasigóis Felício

A glória de Cora Coralina, à medida em que o tempo passa, cada vez aumenta mais. Turistas visitam a cidade de Goiás, agora reconhecida como patrimônio cultural da humanidade, motivados pelo retrato que a poetisa faz de seus becos, de seu casario colonial. Seu rosto poético se confunde com a fisionomia da cidade. É um caso de amor coletivo gerado pela criação poética. Sua estrela, que já brilha intensamente, tende a brilhar mais fortemente ainda, depois que o patrimônio histórico da antiga capital foi afetado pela enchente da virada do ano. De outros países, de vários continentes, chegam ou pedem notícias sobre ela. Um amigo, o Antonio Hipólito, tem um irmão que não via há 30 anos.

Corrido da ditadura militar, pelo crime de alfabetizar pelo método Paulo Freire, deu com os costados em um país do continente africano. Intelectual e tradutor, viu por lá um poema de Cora, e se interessou em conhecer mais, de sua obra. . Em visita aos pais, em Corinto, (MG) pediu livros da poetisa. Acionado pelo Hipólito, peregrinei, em sebos e livrarias, a fim de atender o pedido. Aproveitei para mandar outras obras, da lavra de outros poetas e escritores goianos. Outro amigo dá-me notícias de ter visto livros de Cora em Miami. E acrescenta: lá só dá Cora, Bernardo Elis e José J. Veiga. Neste último, impressiona a todos a denúncia da brutalidade, na invasão de cães e bois, a uma cidade. E estes três, quanto mais passar o tempo, mais terão a força de sua arte reconhecida.

Como esquecer que a gloria de Cora Coralina foi detonada pelo cronista Carlos Drummond de Andrade? Em sua crônica, no Jornal do Brasil (o mesmo jornal que, bem há pouco, a ela dedicou todo o seu Caderno Letras) o anjo gauche itabirano escreveu sobre a vida simples e cintilante de Cora:”Vejo em Cora Coralina uma estrada cheia de sol, em que passam o Brasil antigo e o Brasil atual, sem as crianças e os miseráveis de hoje. Sua poesia é extremamente simples. Tem o ritmo do andar e abrange a realidade do país. Em seus mais belos poemas conta que dentro dela vive uma cabocla velha, que vive à beira do fogão, e uma doce lavadeira do Rio Vermelho, com cheiro de sabão e água; vivem também uma cozinheira, cheirando a pimenta e cebola, e uma mulher proletária, linguaruda, sem preconceitos, e uma irmãzinha, a que ela chama de mulher da vida.

Daí o interesse profundo em com a poesia e a poesia simples dessa mulher goiana extraordinária, única entre as poetisas de seu tempo, que ousa assumir tais identidades. Cora celebra todas as vidas com o mesmo sentimento de quem agradece a Deus por estar no mundo. E defende, exalta, proclama os humildes; tira poesia de tudo. Como no poema Ode às muletas, símbolo de resignação ao sofrimento; como a oração ao milho, em que imagino o que o que o milho está dizendo ao vento. E o canto festivo dos galos, na glória do dia amanhecendo: “Eu sou o milho no cocho do curral, onde o gado vai buscar sua comida. Eu sou a pobreza vegetal, agradecendo a Deus”. Cora não esquece o menor delinqüente, o menor abandonado. Dedica-lhes poemas sem demagogia, ou falsa piedade. Cora é um instrumento extremamente sensível às dores da sociedade, porém não prega nenhuma reforma social, por meio da violência.

Sua intenção, seu destino, é derramar sobre toda gente o óleo de um amor universal. Um dia chamei-a de diamante goiano, cintilando na solidão de sua casa pobre à beira da ponte, em Goiás. Mas agora a vejo inserida na eternidade, luzindo como uma estrela”. Que a estrela de Cora estava predestinada a luzir sempre, e cada vez mais, já o anunciou, profeticamente, mestre Drummond. Sim, ela tinha razão: “Não morre quem passou cantando pela vida a música de seus versos”.