quarta-feira, setembro 11, 2024

A chave de ouro de Fernanda Cruz


Eu falaria sobre todas as nuvens, sobre todos os poetas, sobre todos os gravetos, da utilidade e da inutilidade de tudo que podemos enxergar atravessando o raio de sol. Um tronco que não é uma cidade, pois não se submerge nas águas. A palavra que nasce de uma outra e surge não só em versos de Tennyson. Em Fernanda Cruz, essa poeta goiana de farta versatilidade lírica, o verso "entreaberta noite de céu tão aberto" abre os braços. Em Tennyson, ressoa o verso "Fútil o ganho para o rei nada útil" (
It little that in idle king). Sem essas liberações internas, a poesia fica bem fútil, bem irrealizada.

Encontrei Fernanda Cruz por pura casualidade. Emergiu de um pavilhão em Goiânia, numa noite de dezenas de mesas rodeadas de poetas. Estava atrás de um balcão com seus livros entre milhares de pessoas. Rimos e nos conhecemos e somos irmã e irmão abraçados, surja o pavilhão iluminado ou a noite do apagado Humanismo. E nossas poesias se entrelaçam gulosas de língua e performance.

Gosto de me ocupar da poesia que não parte de uma exposição específica, que não desbarranca, mas que se ocupa dos esgarçamentos para entrelaçar línguas e desespero, se for desespero, ou braços, se esses se estenderem. Versos que surgem para surpreender quem escreve e quem lê. A ternura que nasce independente da lírica convencional, pois a vida quer se estender como árvores do cerrado. Galhos secos ou frutificados que se infiltram em aramados de caramanchões a recobrir a terra de vida para que nada seja estéril num socavão.

a sombra da árvore se alarga e se estreita
também meus braços se alargam num segundo
em outros braços que é o instante e se deita

E uma criança possivelmente virá recobrir com tinturas a sombra. Definir o sujeito para o verbo que ficou agarrado solitariamente no final de um terceto através de uma pequena garra (e). Mas os verbos, em Fernanda Cruz, são enganadores para inversão das metáforas. De repente não são os pés que alcançam o musgo (e os pés/o musgo alcança). Os pés talvez estivessem paralisados e o musgo fosse mais apressado.

Os verdadeiros poetas se realizam pelas grandes inversões que conseguem enxergar, pela visibilidade do interior das palavras e das construções que elas ofertam (subliminar/semblantes). As terminações das palavras são escorregadias, no entanto, as junções internas, quase comuns, mas diversas, são encontradas só com chaves muito pessoais. E Fernanda Cruz tem a chave de ouro na memória para desentranhar as junções das palavras. Nela, por esses desentranhamentos, os eventos são outros, já alheios ao cotidiano, à angústia.

Eu gostaria de entrelaçar versos só na memória como é a prática dos recitais de Fernanda Cruz pela capital goiana, essa poeta que estreou em 2008, com Regatos do Instante e publicaria ainda, em 2012, o poemário Ar mais próximo, para chegar a 2019 com esse Irreversível amarelo (2019). Seus livros são um exercício zen de abraçar. Se eu conseguisse retê-los na memória, não teria de interromper o fluxo dos espasmos do inconsciente. Pode existir a performance, podem ocorrer a doença e suas consequências, mas a poesia existe em qualquer circunstância, seja ou não abolida a presença do autor. Mas e a poesia de uma amizade, se a amizade exige presença? No entanto, a presença que atua na poesia de Fernanda Cruz não é mais a da autora, mas a de quem lê. Nisso a grandeza da leitura − somos a mistura do que somos com a de quem nos diz o que é ou quem foi. Depois de ler Fernanda Cruz − juntos, fertilizamos um eito da vida.

a voz que pousa
e faz voar
toda matéria

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