segunda-feira, junho 15, 2009

Um drible na alquimia - Yêda Schmaltz

por Brasigóis Felício

(Faz algum tempo que, no mês de maio, a poetisa Yêda Schmaltz foi embora deste mundo (e, sabemos, muito contra sua vontade). Deixou uma obra vasta e importante, embora pouco estudada por aqui. Não temos olhar para nós mesmos, além de que, na província boiana, alguns criticocratas, dentro e fora das universidades, insistem em torcer seus narizes empinadinhos para o que se escreve em nossas plagas – a não ser, é claro, para conceder votos e laudatários encômios a coleguinhas de grupelhos de literatos GENiais. Quando lançou Vrum, em formato de bolso, causou espanto e incompreensão auto-suficiente ou arrogante. Pela ousadia formal, e também pela incompreensão conteudística. Por criticocratas levianos foi acusada de ser anti-feminista – logo ela, que não suportava a hipocrisia da confortável infelicidade doméstica em que viviam (vivem) algumas de suas amigas do poetariado anhanguerino. Vai nesta Bula este texto em homenagem à grande poesia de Yêda:

“A mitologia é a musica. É a musica da imaginação, inspirada nas energias do corpo. Uma vez um mestre zen parou diante de seus discípulos, prestes a proferir um sermão. No instante em que ele ia abrir a boca, um pássaro cantou. E ele disse: “O sermão já foi proferido”. J. Campbell

“Obscura poesia,/independente de toda e qualquer realidade!/Música: dou meu estado de alma de beber/como num beijo — pura Magia.” Y.Schmaltz

Sobre ser Yêda Schmaltz uma das mais altas vozes femininas da poesia brasileira é fato sabido e consabido por muita gente séria e boa, por estes Brasis afora, e também no exterior. Conheço pouca gente, como ela tão comprometida com o oficio de escrever literatura. Antes de aposentar-se como professora do Instituto de Artes da UFG, já conquistara, por seu talento, e uma obra sólida, quase toda premiada a admiração tanto do leitorado quanto da crítica literária. Uma vez fora da cátedra, entregou-se de corpo e alma ao que mais gosta e sabe fazer: escrever poesia.

Yêda tem olho de lince, lucidez e vertigem de vidente, tanto na prosa quanto na poesia. Sua prosa impressiona por sua lancinante e corajosa penetração nos caminhos e descaminhos do existir humano, revela e desnuda os mistérios do Ser Feminino, fato reconhecido por ensaístas respeitáveis. Dos Caminhos de mim com que estreou na poesia, até este instigante, “fulgaz” e vertiginoso Vrum, um drible seco e veloz, na arte de poetar, muita magia poética rolou, no rio heraclitiano de sua re-criadora indagação do mistério mitológico, e de seu corajoso e visceral mergulho na perigosa e fascinante questão da sexualidade feminina.

A quem tenha lido Prometeu americano, Eros, e Rayon,não surpreenderá sua habilidade no re-inventar palavras, re-nomear coisas, uma vez sabendo-se que alquimista da palavra Yêda sempre foi; só que, a cada instante de seu ofício de “sagaranar”, ou de inventar Sagaranas, liberta, em forma de messe, ou de prece, o viço e o vício de sua lavra de palavras. Assim sendo, permite-se grafar palavras que inventa: óbrulo e malovro.

Vrum, poema único, retoma uma recorrência temática, presente na prosa e na poesia Yêdeana, proclamando, quase sempre com uma refinada ironia ou humor negro, a questão essencial, com que a maioria das pessoas nega o corpo e se recusa entrar em corpo a corpo com a vida, em seu medo de viver verdadeiramente. Tudo no viver transborda e irradia o esplendor do poético e a onipresente vitalidade dos mitos. O ódio ao vivo, a avidez pelo poder e o medo de ser, é que revela as pessoas encouraçadas. Para Reich, Jesus Cristo foi vítima da peste emocional ( o instinto assassino ), mais vivo e mais ameaçador hoje do que nunca o foi no passado da história humana. E onde entra a poesia em tudo isto? Mesmo sabendo que ela (a poesia) não serve para nada, não podemos viver sem seu esplendor e fascínio.

A poesia (a busca da beleza) é a revelação do Ser: no verso ou no reverso da moenda dos dias, sua plenitude se cumpre e se legitima na vida vivida, na pele das palavra, nos rios da coragem, e no mar aberto do Encontro. O Ser só recupera sua imagem perdida na existência que se cumpre e se gasta até o osso: “ Ah! Misteriosa e obscura poesia/ independente de qualquer realidade/ música/ dou meu estado de alma para beber/ como num beijo – pura Magia”. Deus não joga dados, nem fala aos mortos-vivos. Onde se nasce, onde se cresce, no corpo vivo da Vida – aí Deus se manifesta, e revela a sua face. Mesmo sabendo que fazer poesia é um brincar com palavras, na busca impossível da palavra essencial – o silêncio intraduzível, o poeta escreve. E o faz por não poder brincar de ciranda, ou jogar pião, com as crianças. E se

OM (ou AUM) é o som primordial da vida que não teve princípio nem terá fim, Rosebud é a palavra que falta – não nos poderes do cidadão Kane, mas no quebra cabeça dos dias e no labirinto da existência humana.

Se tudo o que é fora é dentro, tudo é em cima como é em baixo, a mentira pode ser a verdade, ou vice-versa, uma vez que, segundo mestre Quintana, a mentira é uma verdade que esqueceu de acontecer. O efêmero instante que passa, a palavra imarcessível, que sempre nos escapa, o som de mantra, que daria completude ao Ser, é o objeto da busca de todos os poetas e artistas. E se “ há um poema que jamais chega a palavra”, há uma palavra perdida, que jamais se revela no corpo vivo da poesia. Na paixão e no esplendor de estar vivo na carne, os poetas buscam a impossível maestria na magia da criação. O Vrum, tão fugaz e tão efêmero, voa fora do estreito limite das horas e minutos, a matéria infinita que elabora a nossa pobre eternidade.

Certo, com a modernidade os poetas perderam o halo da santidade, mas conservaram vestígios do gesto subversivo de Prometeu, e como ladrões do fogo da criação, buscam cantar o esplendor de viver, sem jamais deixar de proclamar seu tempo e sua pátria. São desta lucidez e desta dureza na ternura, a raça dos verdadeiros artistas. E até que seja definitivamente derrotado o instinto anti-vida e a peste emocional, que a tantos condena ‘a morte em vida, terá a humanidade que empreender a maior e a mais gloriosa de suas façanhas: a conquista de seu próprio coração.

Com este Vrum, tão cristalino e profundo, mas ao mesmo tempo rápido ou demais, ou desconcertante, Yêda deu um drible seco na alquimia: Uma finta curta, de futebol de salão. E o fez apoiada em Joseph Campbell , que foi uma das maiores autoridades no campo da mitologia em nosso século, e também em Carl Jung. A obra de Campbell estuda, dentre outras, as mitologias primitiva, oriental, ocidental e criativa. Segundo ele o que estamos procurando é uma experiência de estar vivos, de modo que nossas experiências de vida, no plano puramente físico, tenham ressonância no interior de nosso ser. E diz mais: O homem não deveria estar a serviço da sociedade, esta sim é que deveria estar a serviço do homem. A mitologia consiste nas histórias sobre a sabedoria de vida. O homem não deve submeter-se aos poderes de fora, mas subjugá-los, como diz a poeta: escrever sobre algo é pura deficiência — nossa felicidade é maior do que só isso.

Yêda Schmaltz escreveu um livro para todos, mas especialmente para os iniciados. Explico: todos hão de ler, compreender e amar o seu libelo de buscadora da palavra que não existe; mas somente alguns conseguirão penetrar profundamente no sentido de seus versos — os criadores, principalmente os poetas, que buscam a palavra inexistente e sofrem o desespero de jamais encontrá-la; os conhecedores de mitologia, de psicologia e da obra de J. Campbell, um dos maiores estudiosos das mitologias do século, já que nossa autora o cita de forma cabalística abrindo as asas do seu vrôo de vrum, o que, além de nos encaminhar ao autor, delimita o livro VRUM como “o livro mítico dos míticos” no contexto da seqüência de uma obra na qual Yêda recriou mitos variados através de livros diversos; pois bem, percebe-se aqui estabelecido um centro catalisador, pois VRUM então se pretende junção de todos os mitos, na medida em que desenvolve o tema do significado profundo da própria mitologia.

Sinto-me à vontade para tentar compreender, pelo menos em parte, este texto, desde que passei a vida toda como poeta buscando essa palavra que não se encontra e também porque tenho a sorte de possuir alguma coisa da obra de Campbell, o autor que inspirou a poeta a escrever sobre o supremo mistério do ser que está além de todas as categorias de pensamento. Como Kant disse, a coisa em si é não-coisa. Transcende a coisidade e vai além de tudo o que poderia ser pensado.

As melhores coisas não podem ser ditas porque transcendem o pensamento. “O verdadeiro artista é aquele que aprendeu a reconhecer e a expressar o que Joyce chamou de “radiância” de todas as coisas, como epifania ou revelação da sua verdade.” Corroborando com estas idéias, nossa autora escreve: ...me livro/da camisa-de-força do alfabeto,/com seus inúteis caracteres. Visito/outras fontes(...)que apontam (...)/uma só imagem: cinco pontas no poente, /forma traduzindo-me num plausível hieróglifo. E afirma em seguida: Pensar por imagens, a arte que perdemos. Assim fazendo, remete-nos à arte visual dos primitivos, seus desenhos e suas mandalas repletas da maior significação. A imagem visual comunica mais do que as línguas que separam os homens: para entender um quadro de Van Gogh ninguém precisa falar holandês.

É notória a troca do eu-lírico realizada por Yêda em Vrum, pois ela escreveu o poema no masculino, é o poeta que fala: Tudo é mais seu, amigo, que daquela/ de onde nasceram os meus sofrimentos/ e meus improvisos. (Grifos nossos.) Desta feita, a autora não pretende fazer uma poesia separada “de mulher”, ou feminine ou feminist ou female, como, lembrando o ensaio de E. Showalter, citou Gian Luigi de Rosa em seu texto; é maior do que isto porque não somente expressa a busca da identidade feminina através da forma literária, mas a busca do poeta de modo geral, tanto do escritor como da escritora. É o poeta que Y. Schmaltz tem dentro de si que fala. É poesia só, independente de sexo. Algo maior que defender os segregados homossexuais, negros e mulheres, coisa que a autora já tanto realizou em sua obra.

Sabemos que Yêda foi uma estudiosa de psicologia e mitologia. Ela sabe que somente a leitura dos grandes psicanalistas como Freud, Lacan e Jung não vai ajudar ninguém a encontrar seu eu-interior e nem autorizar intempestivas analises plantadas nos chavões “complexo de Édipo, de Electra” ou o que o valha. Sabe que qualquer que deseje compreender a alma do outro, deve primeiro fazer o intenso estudo do si-mesmo, que envolve anos de auto-análise.

J.C. ilustra isto: “Nunca fiz aquilo que queria, em toda a minha vida”, afirma alguém. Este é um homem que nunca perseguiu a sua bem-aventurança. Poetas são aqueles que adotaram, como profissão e como estilo de vida, o estarem em contato com a própria bem-aventurança. A maioria das pessoas se preocupa com outras coisas. (...) A história que temos no Ocidente, na medida em que se baseia na Bíblia e pertence ao primeiro milênio antes de Cristo, não está de acordo nem com nossa concepção do universo, nem com nossa concepção da dignidade humana; pertence a algum outro lugar. (...) O amor não tem nada a ver com a ordem social. É uma experiência espiritual mais elevada do que aquela do matrimônio socialmente organizado” – é sobre isto que Yêda escreve: as pessoas tem listras e costumam acreditar/ que para exercerem o afeto,/ precisam providenciar um documento — / essas coisas de alianças, canudos,/ certificado de propriedade. Ela sabe que a vida começa com os atos de desobediência — comer o fruto proibido é o que deu consciência ao homem e propiciou mudanças.

Os versos a seguir bem ilustram esta ideologia: A vida não acontece no pensamento. Nem no poema./ Beijos escritos não dão prazer algum./ Vida é atitude. Eu sou o que eu faço./ Você é o que faz. Feliz ou infelizmente./ Se nada faz, está morto. Praxis./ Schmaltz propaga a ideologia do mitólogo também nos versos: Palavra nenhuma traduz o nosso sonho./ Poema nenhum basta a nossa vida. Ou então nos versos finais do poema: Limitamos tudo isso, se isso é tudo,/ na medida exata em que pensamos nele./ Fica indizível, do significado, a essência./ O silêncio é que me diz e não obtém/ nunca a resposta./

O que se deixa de escrever, é o sublime., pois o autor afirma que você pode encontrar a Palavra em você mesmo e que tudo o que é transitório não é senão uma referência metafórica, o que todos somos. E continua: as pessoas, por toda a parte, morrem por metáforas. Mas quando você realmente capta o som “AUM”, o som do mistério da palavra em todos os lugares, então você não precisa sair à procura de alguma coisa e morrer por ela, porque é certo que ela está à sua volta. Aquiete-se apenas, veja-a, experimente-a e conheça-a .

Essa é uma experiência culminante. “AUM” é uma palavra que representa aos nossos ouvidos aquele som da energia do universo, da qual todas as coisas são manifestações. Quando você pronuncia adequadamente todos os sons vocálicos estão incluídos na pronúncia. As consoantes são tomadas aqui simplesmente como interrupções do som vocálico essencial. Todas as palavras são, portanto, fragmentos de AUM, assim como todas as imagens são fragmentos da Forma das formas. AUM é um som simbólico que coloca você em contato com o ser reverberante que é o universo.

É então que Campbell encerra uma de suas entrevistas, afirmando que as palavras são sempre qualificações e limitações (Palavras limitam, qualificam./ Não quero mais escrever, porque a palavra/ não consegue refletir meu sentimento.): ... e todos nós, fracos seres humanos, acabamos ficando com essa linguagem miserável, embora bela, mas limitada para se tentar descrever... eis por que é uma experiência culminante romper com tudo isso, às vezes e perceber...


A mitologia! “A canção do universo — música que nós dançamos mesmo quando não somos capazes de reconhecer a melodia.”

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