quarta-feira, outubro 06, 2010

A poesia de Rio do Sono

Alaor Barbosa

Rio do Sono, o primeiro livro de poesia de José Godoy Garcia, foi editado há 31 anos pela Bolsa de Publicações Hugo de Carvalho Ramos, da Prefeitura de Goiânia. Apesar de tanto tempo passado, pouca gente o conhece fora de Goiás, e mesmo em Goiás.

Até hoje os livros publicados em Goiás não têm conseguido atravessar as fronteiras de Goiás e jazem escondidos numa espécie de ineditismo às avessas – situação de humildade muito própria dos goianos. Que-dirá em 1948, quando Goiânia ainda era uma capital sem nenhuma expressão e importância e Goiás mal deixava de ser uma terra remota e ignorada. Conta Machado de Assis, em uma das suas crônicas, que na sua época um grupo de escritores pensou em organizar uma expedição para viajar ao sertão a fim de ver se Goiás existia mesmo…

Sempre foi muito pobre e atrasada, a literatura de Goiás. Por causa do atraso econômico e do isolamento geográfico, a produção intelectual dos goianos foi até há pouco tempo muito escassa, chinfrim, imitativa e retardatária. Os movimentos da criação literária e transformação cultural chegaram sempre com muito atraso a Goiás. No tempo da colônia quase nada se produziu. Após a Independência, o que se fez tem pouca importância e significação. Goiás tem sido uma região periférica. O arcadismo de Minas e do Rio, o neoclassicismo da época da mineração, por exemplo, se manifestou em Goiás, porém com um atraso grande no tempo e trazido por um poeta talvez mineiro, talvez carioca, Bartolomeu Antônio Cordovil. O romantismo já morria em São Paulo e no Rio de Janeiro quando Félix de Bulhões o praticou em Goiás; e já morrera fazia muito tempo, quando Joaquim Bonifácio de Siqueira ainda continuava — fiel — a exercê-lo. E o Modernismo da década de 1920 só chegou a Goiás vinte anos depois, com Bernardo Élis, José Godoy Garcia e outros.

A geração de escritores e poetas que em Goiás superou o romantismo e o parnasiano apareceu, de fato, em redor de 1940.

A situação cultural de Goiás, na época do aparecimento do Rio do Sono, apresentava poucos pontos de contato com a dos centros culturais maiores São Paulo e Rio de Janeiro. Goiânia vivia um tempo diferente. Um tempo anterior. Os escritores e poetas que começaram a atuar em Goiânia, depois de 1930 e principalmente entre 1940 e 1950, enfrentaram a tarefa de superar um meio estacionado na atmosfera cultural do fim do século passado — um misto de romantismo e parnasianismo, castroalvismo e bilaquismo.

A poesia de Rio de Sono é original e forte. Constitui a primeira manifestação significativa da poesia denominada de modernista em Goiás. Poesia de lirismo e simplicidade, ternura por tudo o que existe, uma captação da essência amarga da vida, da essência alegre da vida. Aqui e ali, um tom de brincadeira e malícia, próprio dos poetas do 1922 paulista. Eis uma amostra, tirada do poema “Evocação de Maria Elvira”:

Um dia Maria Elvira me chamou no quintal de sua casa,
subiu no pé de manga,
apanhou manga
e jogou uma especialmente
para mim.

Joga, Maria Elvira ! ( A calcinha dela estava suja.)

Mas a poesia de Rio do Sono é séria diante da vida.

O autor inscreveu sob o título uma advertência: “Este livro foi escrito numa época em que não havia liberdade”. Refere-se à época da ditadura de Getúlio Vargas. Vem depois uma dedicatória: “Este livro é para MÁRIO DE ANDRADE, que morreu, mas há de ficar para sempre como lembrança de um homem; dedicado também aos outros homens, com exceção de Hitler, Mussolini, e Franco.”

A advertência e a dedicatória produzem uma impressão enganosa sobre o livro. Pensa-se que se vai ler um livro de poesia panfletária. Mas não é isso que acontece. Ao contrário. Na maioria dos poemas, Rio do Sono é repassado de lirismo, amor ao próximo, caridade, dó. Poesia toda compreensão e ternura humana, anseio de bondade, deseja de solidariedade. Poesia rica de observações psicológicas verdadeiras, essa espécie de verdades óbvias que a gente é quase tentado a consideração como a essência da poesia.
Aqui uma amostra:

A humildade dos homens que tiram retratos,
as mãos caídas,
o rosto firme, a roupa nova.

A humildade dos que devem,
A humildade dos que precisam de emprego,
a humildade dos que não esperam mais nada da vida,
acham que tudo é uma bobagem,
tiveram grandes decepções.

O poema termina assim:

Dentro, bem dentro de nós todos,
a mesma angústia, essa percepção que não se define
ao contacto das mãos, mas resiste ao vento, às chuvas,
aos dissabores e, principalmente,
aos inumeráveis equívocos a que sempre
estamos sujeitos...


Olhando a paisagem, o poeta vai definindo-a é um largo de cemitério. O poema se intitula “Paisagem gozada”:

O largo do cemitério é triste.
Você se lembra do velho Egídio?
Ele está dormindo nesta hora de sol quente.
No largo do cemitério da vida pára
quando os homens passam:
parece que os mortos, de dia, passeiam ali.
Pôr isso o largo é triste.
Ele é enorme e sofre do destino amargo de largo de cemitério.


O poeta e a noite. Vista e sentida, a noite provoca idéias, suscita sentimentos, relaciona-se como poeta:

A noite é uma mulher.
A noite quieta tem uivos
de cachorra doente.
A noite é como o silêncio
de um animal sofrendo.
A noite é pura como as mulheres
que andam à cata de homens.
A noite é a mesma criança sem rumo
como as que pedem esmolas instruídas pelos pais.
A noite é uma mulher
morta em desastre quando levava comida
para o marido operário...
A noite é um brinquedo de criança no lixo.


O poeta de Rio do Sono lembra aquela auto-definição de Carlos Drummond de Andrade:

Poeta do finito e da matéria
cantor sem piedade, sim, sem frágeis lágrimas.


As lágrimas de Godoy Garcia não são fáceis, embora a piedade esteja no fundo da sua dureza. O poeta se afirma humano:

Gosto de todos.
Mesmo aos que consideramos inimigos;
para esses tenho as minhas reservas
nunca, porém, o meu ódio.
Sou daqui,
deste mundo.


Poeta do humano, “daqui, deste mundo”. Daí falar de preferência de crianças, bêbados, prostitutas, párias, arruinados, heróis anônimos, gente humilde. Sempre sem retórica e sem ênfase. Com versos diretos e curtos. Imagens substantivas e nuas.

No poema “Mulher do Povo”, a mulher é Rosa, o que lembra Drummond:

Rosa tinha um rosto
de menina.
Rosa tinha os seios
de moça
Rosa tinha os olhos
de uma prostituta.
Rosa tinha formas
de um irmão.

E no fim:

Rosa é pura e não sabe negar
quando
homens no beco se atiram contra ela
fedendo a suor
ou mesmo quando chove muito
que o barro toma conta do corpo
e eles fedem a roupa molhada, com mistura de barro
e suor.
Ela é pura como todas as puras
e em verdade ela é mulher boa e pura
como as que se entregam aos viciados em troca do
bem-estar deles
ou mesmo para servir a um amigo em horas penosas de
sua vida.
Rosa, a mulher do povo...


Em “A Rua dos Homens” o poeta afirma que a matéria do seu canto à a vida da rua:

Eu sou o poeta
desta pobre vida que está aqui na rua.
Eu sou o poeta sem muito recurso
mas faço versos assim mesmo:
alma da multidão que está na rua.

Explica a rua e repete:

Eu sou o poeta pequeno destas ruas
e me orgulho disso; poeta deste mundo
que não aprendeu direito nem aprenderá
jamais as regras de trânsito.
Poeta destas velhas e pobres ruas,
que às vezes sobem tortas
e às vezes descem retas, profundas na noite.


Poema duro quanto à significação e perfeito na estrutura e ritmo é “Os párias”:

Caiu um olho.
O homem ficou sem ele.
Caiu um dente.
O homem ficou sem ele.
Caiu a filha.
O homem passou vergonha.
Caiu a vergonha.
Vai pedir dinheiro emprestado no bordel.


“Os párias” é famoso em Goiás. Porém, mais famoso é o poema “Espécie de balada da moça de Goiatuba”, que está para a literatura de Goiás como o poema da pedra no caminho, de Drummond, está para a literatura brasileira. É um poema popularizado. O seu ritmo e simplicidade, malícia e amoralidade já se incorporaram ao patrimônio poético dos goianos. Tal como o nome de Drummond lembra “pedra no caminho”, José de Alencar a “virgem dos lábios de mel”, Monteiro Lobato, Jeca Tatu — assim o poema da moça de Goiatuba se liga a Godoy Garcia como algo de característico.

Em Goiatuba
tem uma moça
que o coração
grande ela tem
Em Goiatuba
tem uma moça
que coração
grande ela tem.
A moça de lá
é só chamar vem.


Assim começa o poema; e com variação pequena, termina assim. É o poema clássico e típico não só da poesia de Godoy, mas da poesia moderna de Goiás. Afonso Félix de Souza e Jesus Jayme fizeram paródias desse poema, o que lhe demonstra a enorme força expressional.

Também caracteristicamente godoiano e já famoso é o poema “Tudo tem seu tempo”, captação extra e expressão perfeita das características da cidade pequena brasileira:

Tudo tem seu tempo na pequena cidade.
Tempo de casamento.
É uma fartura
de casamento.
As mocinhas novas enjeitam
as velhas se entregam.


Embora original, a poesia de Rio do Sono lembra a de alguns outros poetas contemporâneos. Pôr isso se pode afirmar que é uma poesia de seu tempo. Poesia que reflete um tipo de sensibilidade e interesse peculiar à época em que foi elaborada. O lirismo simples tem uma ressonância de Manuel Bandeira. Um certo sentimento amargo do mundo sugere Drummond. A dose de malícia e, como dizer?, ironia também evoca Drummond e Bandeira. E como não pensar em Drummond, o do “Canto ao homem do povo Charlie Chaplin”, quando se lê o “Canto ao poeta irmão de Harlem”?

Li, Langston Hughes,
eu li o teu poema “O negro fala dos rios”
E perante todos, neste instante de lutas, (não quero o silêncio, que é forma de luta de covardes),
eu quero falar de negros,
muito me comove falar dos negros.


O poeta Godoy Garcia abre a camisa ao peito e se diz filho remoto de Espanha. E canta:

A tua cantiga é de paz, Langston Hughes,
é canto de guerra.


Hughes está longe — nos Estados Unidos – e a mensagem a ele terá de percorrer uma distância enorme:

Eu te quero afirmar que esta mensagem por sim mesma
é a mais simples acenação que um homem pobre colocado no sertão
do Brasil te pode fazer.

O poeta clama pela união dos homens — união e eficiência na luta:

É preciso que suportemos os fantasmas porque senão
jamais eles serão destruídos,
de nada vale a batalha individual dos matadores de baratas,
será preciso uma desinfecção geral, poeta.

No poema “Menino Sozinho”, o quadro é de pintura e fábula:

Não há mão: há um toco de mão
Vem do campo onde ele mora montado em seu cavalo,
Vem no trote mole, desenhado curvas através das moradas, pedindo a sua esmola.
De longe, quando avista os meninos brincando no largo,
ele já apressa a marcha, depois fica ali parado,
esquecido, olhando os meninos.


O menino faz um intervalo curto e prudente na faina de mendigar, e se vai.

Quando volta, de longe ainda volve os olhos e observa
a garotada que vai pela noite a dentro,
despreocupada, como multidão de pássaros
no céu limpo e azul.


O poeta atravessa uma época difícil, dura: o mundo sofre, o mundo geme: uma guerra assola e calcina o mundo, desfigura a terra, a boa terra dos homens — a guerra destrói as cidade e as plantações dos homens. A época é de crueldade lá fora, lá longe: os nazista dominaram a Alemanha e cresceram para cima do resto da Europa, cresceram para a Violência organizada cientificamente. O poeta mora afastado do teatro da violência: está em Goiás, e somente sabe da Violência organizada cientificamente. O poeta mora afastado do teatro da violência: está em Goiás, somente sabe da Violência porque os jornais contam, o rádio noticia, as informações circular e chegam até este interior longínquo do Brasil. O poeta é contra a Violência. Quando a França caiu, o poeta gravou o momento amargo:

Eu escrevo o meu verso no escuro.
Ele traz o mesmo som do escuro.
Ele conserva minha alma.
Sei que a mão traça no rude papel as palavras mais rudes
trágicas palavras sem pontuação
nos caminhos certos.
Há uma chaga negra que desce,
entra pela pauta:
são as palavras que se consomem
ante a treva do papel.
Sei que este é o meu verso mais puro
Como a troca de olhar no momento exato da morte,
meu verso fixou este momento, esta insônia, estse pensamentos e estas quatro horas da manhã, silenciosas e trágicas.

O poema “Verdade” tem um tom de fábula imemorial e perene:

A criança foi buscar o mar
e trouxe o mar, brincando.


O mar foi então arrumado nas covas já preparadas; a lua foi trazida; houve conseqüências:

O mar estava fazendo as pazes com as novas terras
e olhava para as crianças com muita gratidão porque
até o próprio mar não acreditava
e agora ele dava graças por estar gozando da nova vida.

O lirismo de Godoy Garcia tem muita força:

Quando uma moça dorme
é ver coelinho dormindo
a gente pensa muita coisa
e ri dos pensamentos...

Outra amostra:

Quando as noites mais claras
são misericórdia para os que amam,
quando nós nos conhecemos intimamente,
quando são límpidas as noites, irmã,
a vida se torna generosa como o nascer
de broto na hora estranha da madrugada.
Quando as noites são tristes e velhas,
a resignação e a dignidade de todos
repousam no silêncio selvagem
das almas desesperadas.
Oh, irmã, nós dois caminharemos tristes, nós dois seremos como cegos unidos,
sem esquecer que tão logo seja possível
lutarmos pela vida, pelos homens, irmã.


A poesia de Rio do Sono é íntima das coisas perenes — o ar, a madrugada, a manhã, a noite, a mocidade, a velhice, o amor, a morte, a água, o mar, os rios, a coragem, a dignidade, a luta, a bondade, o tempo... É uma poesia do brilho de orvalho da verdade mais corriqueira e simples. Poesia de poucas imagens e metáforas, ordena-se como uma seqüência — em ritmo quase de prosa — de verdades coordenadas com energia e concisão: beleza concentrada. O verso mais simples é um achado revelador, uma informação inaugural, que surpreende e entusiasma. É a voz de um poeta sentidor do mundo, espiador do mundo, compreensivo e amoroso a todas as coisas. Poesia de sentimento sertanejo, sim, mas de expressão universal. Uma voz de Goiás no mundo.

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