segunda-feira, julho 16, 2018

Tributo a Jamesson Buarque


Desejo ressaltar, inicialmente, que, se há algum entrelaçamento de amizade para a escolha da obra de Jamesson Buarque para esta abordagem de sua obra, a afinidade inicial advém da própria magia de sua poesia. Antes da lavratura deste texto, encontrei-me umas três vezes com Jamesson Buarque em condições insuficientes para troca de alianças de compromissos pessoais ou de louvação de personalidade. Portanto, se há alguma afeição, como eu disse no tributo ao poeta José Godoy Garcia, é pela própria sedução da poesia.
Desde o contato inicial com a poesia de seu livro Meditações, com ela digladio com encantamento. A amizade com o autor certamente está sendo construída, pois somos amigos daqueles que derrubam barreiras para melhor nos integrarmos à realidade. Ao contrário da ação de algumas lideranças mundiais, a poesia e as atividades de Jamesson são uma trilha real para circularmos desimpedidos pelos territórios.
Logo depois de comparecer ao lançamento de Meditações, em Goiânia, registrei nas redes sociais que o livro traz vitalidade, vivacidade à poesia brasileira, e que a poesia, nas mãos de Jamesson Buarque, deixa de ser algo banal, ocupação de tempo, para ser exercício responsável, pleno de energia. De uma metafísica que só Fernando Pessoa, Rilke e Jamesson Buarque conseguem praticar.
                Depois fiquei relendo o livro por aproximadamente dois anos em busca de delinear o formato de construção de abordagem mais aprofundada, pois o registro inicial não suportava o meu deslumbramento com os poemas nele agrupados. À semelhança do que faço com Fernando Pessoa, Hölderlin, Jorge de Lima, passei a ler partes do livro no transporte público; de pé nas paradas de ônibus; nos intervalos de repouso no trabalho; circulando pela casa, movendo-me na rede, no repouso do vaso sanitário. Aí notei que o livro estava incorporado entre as obras dos grandes autores de minha constante leitura. Daqueles que podemos nos socorrer sempre que desejamos nos emocionar ou ressuscitar o formato de construção do poema. Daqueles que não só resistem à persistência crítica, mas que tem forte presença sedutora à qual não resistimos e voltamos sempre a ela com o mesmo entusiasmo, pois temos prazer em ser esmigalhados entre as unhas do sedutor, já diz a psicanálise – se bem me lembro das declarações de Maria Rita Kehl numa conferência que assisti na UnB. E a poesia de Jamesson Buarque nos torce entre as unhas de cada verso.

Ao assistir ao documentário Eight Days a Week  sobre The Beatles, fiquei imaginando algumas frases que pudessem ser acrescidas à crítica que viesse a produzir. Não tive como anotá-las ali no escuro do cinema, e assim, como muitas outras em outros momentos, foram perdidas. Imaginei-me lendo o livro como Sigourney Weaver, que, em seu depoimento no filme, disse que usou latas vazias de cerveja, na juventude, para alisar os cabelos e comparecer ao show dos The Beatles como se eles fossem notá-la toda arrumada durante o espetáculo, entre 56 mil pessoas. No entanto, não tenho mais o visual dos anos 1970 para me comportar como a atriz e nem terei oportunidade de fazer a leitura entre número tão desejável de leitores, se a edição de 700 exemplares de Meditações sequer foi toda comercializada, e, na literatura, são raros os pop stars (e os pop stars da literatura nem sempre são leitura recomendável). E, ainda, a leitura não exige a presença do autor, portanto, pode ser feita com os cabelos desalinhados ou até mesmo em estado de nudez absoluta. Se o ato amoroso é desenvolvido com exigências formais, não é prática de amor, mas crítica ao amor. Se há aprofundamento excessivo na leitura, há crítica e, possivelmente, inutilização do fluir emocional. Diante de Meditações, experimentei diversas posturas, e o livro suportou todas elas, inclusive a postura formal.

Quase não se questiona quais as condições ideais em que se deve ler poesia, se em clausura, em sonolência, dopado ou excitado. Num mundo de predomínio da estatística, se fosse possível, a emoção seria tabulada. As condições de leitura são tão diversas quanto diversas são as estruturas da psique de cada um (a psique de quem levou chuva nos barrancos do rio Calvo não é a mesma daquele que meditou às margens do rio Tejo).

Na estruturação, Meditações parte da leveza lírica do movimento introdutório para ganhar profundidade clássica crescente nas divisões que complementam o livro. E é bom que Jamesson Buarque tenha preferido organizar a obra assim, como ele mesmo explica em longa nota introdutória (sem uso da primeira pessoa, apesar de assiná-la). O auge ocorre no poema “Eros contra Afrodite”, onde o autor se aproxima da experiência mítica da história, encaixa-se no real, libera energias pessoais, resultando num texto complexo, sem tornar-se inodoro em instante algum. Como na poesia medieval - repetições, antíteses, fonética premeditada, rimas internas, inversões repetitivas de versos.

A sessão “Meditação dos dias” – que falsamente se apresenta como um corpo unitário – compõe-se de poemas isolados, cada um podendo ser compreendido em seu corpus próprio. Todas as seções desse poema, que me emociona sobremaneira, certamente pela aproximação dos eventos políticos contemporâneos ao momento de minha leitura, apesar de os poemas terem sido compostos durante uma realidade social não tão diversa, pois a crise do país ganha fôlego quanto mais se mantém longeva. Sobreleva, ainda, o andamento onírico-etílico dos versos. Vejamos este que surge no segundo texto do poema: “Eu drama num gole enorme de nada”. Talvez nesse poema resida um dos versos mais fortes de Jamesson Buarque (“um morcego morto num ventre de urubu”), em sobrevoo à altura de Augusto dos Anjos (“Um urubu pousou na minha sorte”). E quantos urubus pousam em nossa sorte e quantos morcegos agarrados ao ventre de tantos outros urubus!

Pela exposição do andamento do cotidiano, é de deduzir que toda a série de poemas da parte intitulada “Meditações do dia” traz elementos autobiográficos fragmentados nos versos, desde a experiência de leitura do autor à clausura no ambiente doméstico. Outros questionamentos ficam em suspenso: o que pesa mais no poema para ebulir a emoção? A construção formal? O confronto da realidade exposta pelo poeta com a realidade que se impõe ao leitor? A poesia só se confirma se “te agranda las tetas/te achica las tetas/te hace la puñeta/te levanta el culo/te deja sin culo” como confirmam os versos de Alberti em homenagem a Picasso. E a poesia de Jamesson Buarque aumenta o púbis e as tetas do leitor.

Poderíamos aprofundar a busca destes elementos autobiográficos presentes não só nesse poema; no entanto, fica o trabalho de campo como tarefa para algum futuro candidato a doutor em poesia. E esse futuro doutor em poesia, possivelmente, só irá comprovar que a remissão desse poema à obra O trabalho e os dias, de Hesíodo, se dá apenas no formato do encadeamento dos versos, pois a temática é bem antagônica. Hesíodo detém-se, pela própria época de composição de sua obra, no trabalho rural, enquanto que, em Jamesson Buarque, expande-se a bruxa drummondiana na estranheza da cidade. Também não chega a ser enganosa a aproximação do título às meditações de John Donne, pois a expressão metafísica sobressai nos dois autores.

Compreendo que, em Jamesson Buarque, há uma tensa ebulição da tradição poética, da evocação de eventos cotidianos, uma naturalidade na composição dos versos e exatidão em formatá-los, pondo em relevo o óbvio dos registros da realidade, que encrava no leitor o prazer de participar do canto cosmogônico do Universo, do caos político, da hilaridade de rir-se da própria dúvida existencial, sempre amarrado ao corolário da perfeição. A perfeição só existe se há quem dela participe e a compreenda. Muitos poetas brasileiros não são perfeitos para muitos em razão de a maioria não estar preparada para compreendê-los. Quando o país ler melhor seus poetas os resultados da política serão menos frustrantes, menos morcegos mortos no ventre de urubus. Ou vice-versa, a ocorrência de uma vertente de poetas que produz para a poesia ser encaixada numa proposta crítica, com enorme perda da espontânea fruição. 

Em 29 de maio, vai fazer dois anos que esquadrinho a régua e compasso o livro Meditações na tentativa de enquadrá-lo nas correntes da poesia brasileira. Apresentava-se, inicialmente, o neobarroco ou poesia de invenção, sobretudo em razão da introdução de Cláudio Daniel. Mas esta corrente se me apresentou insuficiente para a classificação da poesia de Jamesson Buarque. Só as referências míticas não justificam o neobarroquismo do livro, pois falta nele elementos surrealistas que permeiam a poesia de invenção, e, ainda, algum traço de obscurantismo ou de esvaziamento lírico da composição. Também não é suficiente enquadrar a poesia de Jamesson Buarque na poesia hermética ou na obscurantista ou nalguma vertente das vanguardas, pois das vanguardas, acredito, ela se liberou com fortes pés de elefantes, pisoteando-as com a estrofação organizada, e, nela, o discurso emerge para evidenciar o desconforto do fluxo da realidade.

Assim que cheguei a casa, após assistir ao filme sobre The Beatles, li um único poema do livro (“Da distância”). Concluí que também classificar Jamesson Buarque de modernista tardio, ou de evocar algum elemento dos desdobramentos do Modernismo, blá-blá-blá, seria injusto com a sua poesia. O Modernismo está completando cem anos e ainda estamos preocupados com seus desdobramentos nas obras dos poetas contemporâneos, classificando insuficientemente nossos poetas na terceira ou quarta geração do movimento. Falta manifestos, exposição, quebradeira por poetas mascarados para redirecionamento da classificação dos poetas contemporâneos? A produção poética de Jamesson Buarque, acredito, sobressai pela experiência do autor, corajosa, de valorosa lírica, sem temor de infiltrar-se pelo mitológico e pelo cotidiano. Com precisão, Jamesson reconstrói os mitos com as grades da realidade vivenciada. Basta saber que é uma poesia que se confronta com a experiência do trágico, do clássico e o mitológico.

No poema “Da distância”, há um pronome traiçoeiro no verso de abertura (tê-la nos olhos). No desdobramento da leitura, não ficamos confiantes na identificação do sujeito a que se refere o pronome. Será a “paisagem” ou a “morte” ou a “palavra”? Portanto, Jamesson sai à frente dos demais líricos atuais, pois não fixa a expressão num bilhete de óbvia comunicação amorosa. A lírica atua para criar a inserção do elemento humano na realidade, tornando a palavra permeável à invenção. A sonoridade se desdobra internamente (“distância”, “lembrança”, “fantasma”, “forma”, “aroma”, “inerme”). Em nenhum momento surge a palavra epiderme - pode até movimentar-se algum “corpo”, “ossos”, mas sem a presença de um outro específico dentro do poema. Dois versos são centrais:

 

“Entre os lábios, a palavra insistência decapitada

e a desistência vindo acenar de pertinho.”

 

Nessa sentença, o primeiro verso, de quinze sílabas, portanto, fora do padrão da versificação da língua brasi/portuguesa – próxima da versificação homérica –, traz certa obscuridade, pois a metáfora funciona na cristalização de si mesma. Apesar de “desistência” não ser um elemento vivo, com membros e decisão própria, é algo vivo que “acena” no segundo verso, que contém elementos orais, pois, pelo manual de versificação da língua portuguesa, também não é de boa praxe o uso do diminutivo. Elementos esses que provam que a poesia quer se libertar da sisudez da composição e arrastar-se com os pés das possibilidades de desarticulação das palavras. As palavras passam a articular outros significados. Depois, numa reunião em minha casa, pedi ao Antonio Miranda para ler o poema “Da distância” – leitura que postamos nas redes sociais. Consultei o Miranda sobre os efeitos da construção dos dois versos com a presença de elementos da oralidade, e ele abonou a minha visão do justo uso do diminutivo. A descontração libera o impacto do prazer do texto, ainda que ele imprima novos significados à expressividade das palavras.

Destaque, ainda, para a seção “Canção de Mallarmé”, que dialoga com o percurso da história clássica com elementos prosaicos do cotidiano, comprovando que está correto afirmar que “A história sempre acaba em livro”. Há um longo poema que vem encartado na sobrecapa dobrável que enriquece o exemplar, em homenagem à professora Goiandira Ortiz de Camargo. O poema dialoga com o signo e com as formas de alteridade:

 

 

Depois de hoje, saiba você que

brota da idade em meia aurora

outra página, outro signário

 

Nunca é tarde para outra via

nem para outra

 

Esta página surge agora e da matéria dos dias

da carne dinâmica dos dias

Às vezes me indago porque não deixamos o poeta existir sem tanta classificação. Talvez a futura crítica vá chegar a possibilidades totalmente multifacetárias de enquadramento da poesia que ora se produz nas diversas localidades brasileiras. Não vejo possibilidade de classificação de poetas tão díspares como os contemporâneos Jamesson Buarque, Luci Collin, José Inácio Vieira de Melo e Antonio Moura dentro de uma mesma corrente. Cada um atua com os elementos da própria formação, cultura local, leituras diferenciadas, com produções definidas em encruzilhadas individualizadas. 

Foi por casualidade o meu primeiro contato com a poesia de Jamesson Buarque. Ao coletar material para uma antologia da poesia de Goiás, visitei os sebos de Goiânia e comprei o seu livro Novíssimo testamento, de 2004. Busquei informações sobre sua atividade no universo virtual, deparando-me com um fomentador da poesia na Universidade Federal de Goiás, em promoções de oficinas literárias e nas redes sociais (mas nas redes sociais ele tem sido mais comedido nos últimos tempos). Quase me frustrei ao constatar que ele nasceu em Recife (PE). No entanto, ele já é merecedor de cidadania goiana por contribuir com a poesia da localidade desde 2009. Orbita em torno dele uma juventude em êxtase com a poesia. Merece saudação essa atividade, que inflama a juventude com um método de compreender a poesia, com novas propostas de liberação psíquica para produzi-la. Destaca-se ainda que essa atividade tenha contribuído para que ele também melhor organizasse o próprio método de composição, alcançando patamares raros de liberação lírico-onírica. Percurso idêntico foi meu encontro com o trabalho de Patrícia Ferreira, autora das ilustrações do livro e que é homenageada no poema “Patchwork”. No final desse poema, há um pequeno intertexto com a obra de Eliot, bem como outros intertextos em outros locais do livro. No poema “Da distância”, aparecem dois versos integrais de Manuel Bandeira. Por mencionar Eliot, relembro da récita do poema “Os homens ocos”, por Marlon Brando, no filme Apocalipse Now – momento fomentador da poesia que passa despercebido para o expectador iletrado de poesia universal.

 

Os filmes de Andrei Tarkovski nos afirmam que a poesia é um elo que entrelaça o homem no percurso do tempo dos vários territórios. O nosso território só será o mesmo amanhã através da poesia, mostrando que só perdura a angústia prazerosa da fruição de existir. Crescem outras canas, erguem-se outras casas, esfarelam-se outras sementes para outra serenidade à paisagem, a corrupção mal gasta outras moedas, mas o sentimento que vai perdurar é aquele registrado pela poesia. Quando há o cansaço de participar e agir, a poesia ainda contribui para preencher esse caos de desânimo e inoperância (ou ignorância). Quando a comunicação se apresenta deteriorada, a poesia se ergue de dentro da deterioração, organizada no quebradiço das palavras e dos gestos. A poesia nos reúne e nos emociona, seja em que corrente venha a ser escrita.

Para vermos esse entrelaçamento aterritorial e atemporal entre os homens, através da poesia, desejamos mostrar um verso de Jamesson Buarque em confronto com outro de Herberto Helder, do livro Os selos, de 1989, publicado no Brasil em 2000 pela editora Iluminuras:

 

“Pode ser o inventário do sono pode no casulo desdobrado quando a seda”

 

Acredito que Jamesson Buarque – astuto pesquisador da poesia universal para usufruto pessoal e orientação daqueles que orbitam em volta de seu talento – pode ter conhecido o poema de Herberto Helder antes da composição do livro Meditações, de 2015. Portanto, há mais de duas décadas da publicação do livro do poeta português, que só agora em 2017 circula no Brasil em edição completa, Jamesson também compôs versos longos, dentro do parâmetro da poesia exigida pelo seu tempo, de delírio e desconstrução frasal, de entonação nova, em confronto com a desordem do real, num novo estatuto frasal, numa entonação que exige novas pausas, num fumo que nos desloca do cansaço das mesmas esfoliações da seda se do Homem se do macaco se do rinoceronte:

 

”Mas rinocerontes não deliram macacos tomando leite morno”

 

Jamesson Buarque escreve com a sensação do tempo presente mitologizando-o com as inscrições do passado; organiza o onírico, materializando-o na expressão e na correta manifestação da poesia do pós-fuzilamento e das pós-vanguardas.  Meditações, com sua dose de arsênio e ópio próprio, é uma oficina literária para aquele que desejar conhecer a forma correta da manifestação poética em tempos de extrema deterioração da linguagem e debilitação da ética e do Humanismo. É uma poesia que retoma em nós a coragem de emocionar, já que é a rigidez estúpida que move a contemporânea exaustão de existir.

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