sexta-feira, setembro 10, 2010

Alaor Barbosa

Discurso de posse de Alaor Barbosa na Academia de Letras do Brasil (Cadeira n. 30, patrono Érico Veríssimo), proferido na noite de quinta-feira, 9 de setembro de 2010, na sede da Associação Nacional de Escritores (A.N.E.), em Brasília, Distrito Federal.



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Espero e confio que não será mal interpretada – como possível manifestação de vaidade – a minha afirmação de que meu ingresso na Academia de Letras do Brasil é fruto da insistência solidária e magnânima de um homem generoso: José Geraldo Pires de Melo. Um poeta – em tudo o que fazia. Não faz muito tempo, escrevi e publiquei um breve comentário sobre um livro de poesia dele, Oficina do Soneto. Antologia dos poemas escritos ao longo de mais de cinqüenta anos, bem representativa de um tipo de poesia e de uma posição de poeta diante da vida e do mundo. Poesia predominantemente amorosa: de amor do homem à mulher. Na poesia de José Geraldo a idéia e sentimento de amor se expressa com muita força e escapam de toda possível banalização, às vezes encontradiça nessa espécie de produção poética. É comovente a expressão do seu amor a Yeda Nícia, sua mulher a vida inteira: uma história documentada nos muitos poemas escritos desde o ano de 1952. História que se pode dizer edificante – o que, atrevo-me a dizer, deve ser considerado virtude em Literatura, ao contrário do que pensa muita gente que advoga a natureza amoral da Arte.

José Geraldo, o Jota dos amigos mais próximos, repito, foi um grande poeta no seu modo de ser, viver, atuar no mundo. De uma das manifestações do seu modo ser – pleno de generosidade criadora – tenho recolhido, nas derradeiras semanas, alguns depoimentos inesperados, atestadores da amizade – e amizade é poesia – que ele me concedia o privilégio de me dedicar. Fontes de Alencar, esse outro baluarte de cultura, sensibilidade, bondade e retidão humana que veio do Sergipe de antiga estirpe com raízes no Ceará (a estirpe Alencar), me contou, no dia em que combinamos a data da minha posse nesta Casa, que volta e meia, conversando com José Geraldo, este lhe dizia que não podia fazer tal ou qual coisa “enquanto o Alaor não tomar posse”; e, antes da minha eleição, algumas vezes se negou a tomar essa ou aquela providência, alegando que não podia fazê-la “antes que o Alaor seja eleito”. Igualmente Fábio de Souza Coutinho, esse outro caso exemplar de inteligência, cultura, retidão e bondade que convive conosco na Associação Nacional de Escritores e no Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal, me contou, na noite da minha posse nesse Instituto, que José Geraldo o incumbira de “convencer o Alaor Barbosa” a aceitar ser posto no rol dos membros da Academia. Ainda mais comovente o depoimento de dona Yeda Nícia, a eterna musa, perenemente bela, de José Geraldo: ela me revelou que foi mais triste – por não ter assistido à minha posse, a que ele certamente presidiria – que ele se ausentou fisicamente da nossa convivência.

Em face de tais fatos, pergunto se existe peito de homem que se não comova. Homem comovível, me comovi muito, muito mesmo, ao saber dessas atitudes de José Geraldo. Sua amizade a mim ainda mais se valorizava porque formada sem a motivação mais comum da conterraneidade (ele filho do Rio de Janeiro, eu de Goiás) e apesar da diferença de idade: ele pertencia a uma geração bem anterior à minha. Fiquem aqui, registrados o mais solenemente possível, a minha homenagem e o meu agradecimento ao homem e ao poeta José Geraldo Pires de Melo.

Ainda antes de falar do meu patrono, Érico Veríssimo, devo explicar a minha resistência aos convites generosamente insistentes de José Geraldo para eu ingressar nesta já gloriosa Academia de Letras do Brasil. Permitam-me uma breve digressão útil.

Tive em Goiás o privilégio de ser contemporâneo, amigo de pouca convivência e interlocutor esporádico de um grande escritor goiano nascido em Minas Gerais, no município de Patos de Minas – Carmo Bernardes. Ele foi autor de extensa e valiosa obra literária que, mesmo em Goiás, ainda não se tornou bem freqüentada e condignamente conhecida. Seu romance Jurubatuba é um dos bons romances brasileiros; e seus contos são, na maioria, peças perfeitas que documentam muito bem a vida humana e social neste interessante trecho do mundo que é o Estado de Goiás, particularmente a região deste Planalto Central. Carmo, desde que veio de Minas, do município de Patos, aos seis anos de idade, viveu, mais ou menos até aos 30 anos de idade, na roça, em imediações do que depois se tornou a cidade de Brasília. Carmo é, que eu saiba, o único escritor autenticamente roceiro do Brasil. Em nossas conversações, em Goiânia, quase todas na rua e em esquinas, verificamos algumas afinidades intelectuais um com o outro. Uma delas, a que me interessa apontar e registrar aqui, a distinção entre escritor e literato. (Eu prefiro a palavra beletrista à palavra literato, para o efeito de expressar a nossa idéia.) Carmo e eu pensávamos que o certo, o importante, o válido é ser escritor e não literato. Escritor é aquele que escreve para expressar e documentar a sua visão da vida dos homens neste mundo com os seus mistérios e problemas, e com uma finalidade a um tempo digamos prática ou utilitária e transcendente de contribuir para elevar e libertar o Homem. Em duas palavras: nós dois pensávamos que o escritor autêntico é aquele que se preocupa com a condição humana nas suas dimensões essenciais de ente enigmático e misterioso e de ente político, mergulhado em problemas. Era mais ou menos essa a idéia que comungávamos. O literato (ou, prefiro eu dizer, o beletrista) tem uma visão fútil e frívola da Literatura e da Arte, na qual enxerga e a qual pratica como meio de se entreter e de se relacionar com as pessoas em sociedade, mais ou menos como quem coleciona gravatas, se homem, ou como a mulher que exibe vestidos chiques. Carmo era comunista e eu aceitava muita da filosofia marxista, principalmente a seriedade na visão e consideração das coisas do mundo. Isso facilitava e encaminhava nossos diálogos no rumo da concordância mútua. Posso dizer que a nossa concepção da responsabilidade do escritor foi muito bem expressa, embora não na sua totalidade, pelo grande escritor Érico Veríssimo, patrono da minha cadeira nesta Academia. No seu livro de memórias, Solo de clarineta, apresenta Érico Veríssimo uma boa síntese da sua idéia a respeito da responsabilidade social do escritor. Disse ele: “Desde que, adulto, comecei a escrever romances, tem-me animado até hoje a ideia de que o menos que um escritor pode fazer, numa época de atrocidades e injustiças como a nossa, é acender a sua lâmpada, fazer luz sobre a realidade de seu mundo, evitando que sobre ele caia a escuridão, propícia aos ladrões, aos assassinos e aos tiranos. Sim, segurar a lâmpada, a despeito da náusea e do horror. Se não tivermos uma lâmpada elétrica, acendamos o nosso toco de vela ou, em último caso, risquemos fósforos repetidamente, como um sinal de que não desertamos nosso posto”.

Um dos corolários dessa idéia a respeito da distinção do escritor e do beletrista, ou homem de letras, era a rejeição das academias de letras no que elas possam ter, e tantas vezes têm, de agremiações de beletristas superficiais, fúteis, frívolos. Tanto eu como Carmo só aceitávamos participar de uma academia de letras concebida como associação de escritores e não de beletristas. E foi imbuídos dessa convicção que eu e ele aceitamos ingressar, mais ou menos na mesma ocasião, na Academia Goiana de Letras – que nos acolheu, alias, devo registrar, com tocante respeito e consideração. .

A esse propósito, convém uma breve digressão, que me parece útil e conveniente, para declarar bem o que penso a respeito do fenômeno academia literária e as razões por que pertenço a algumas. Aqueles que me conhecem me sabem um tanto infenso a academia, naquilo que as academias possam ter de conservadorismo estético e de culto da pompa e da vaidade. Para mim, academia – uma espécie do gênero reunião de que são também outras espécies os grêmios estudantis, os cenáculos literários, as panelinhas e grupinhos – constitui-se em um fenômeno social humano natural. Monteiro Lobato disse que os cenáculos são filhos do ajuntamento de “meia dúzia de vaidades afins”. Errou Lobato. Os cenáculos, os grupos artísticos, as panelinhas, constituem antes respostas à tendência, à vocação, à necessidade humana de se agremiar, necessidade mais sensível e atuante entre pessoas que se verifiquem entrelaçadas por vínculos de afinidades. Nós, homens e mulheres, precisamos naturalmente de nos reunir. A necessidade dos indivíduos de se reunirem corresponde à necessidade primária de sair da solidão e ao natural desejo de promoverem o autodesenvolvimento próprio e o da comunidade a que pertencem. Não há desenvolvimento humano sem debate de idéias, sem confronto de opiniões, sem o exercício da liberdade de pensar e de falar. E mais: os homens sentem precisão incoercível de mostrar o que fazem ou o que querem fazer. Penso que essa necessidade determinou, no passado mais remoto da vida cultural do Ocidente, o surgimento da instituição e da palavra academia. É uma história curiosa, pitoresca, interessante.

Vamos resumi-la.

Foi na Hélade – a Grécia Antiga. Não somente na principal cidade grega, Atenas – uma espécie de capital cultural da Hélade –; mas também em numerosas outras cidades helênicas, do continente e das ilhas e sobretudo das cidades coloniais fundadas e desenvolvidas na Ásia Menor, no litoral do mar Egeu, e no Sul da Itália, a Magna Grécia. Nesse variado arquipélago de cidades, fundaram-se e desenvolveram-se a Filosofia, a Dialética, a Lógica, a ciência atômica, o teatro, o romance, a fábula, a poesia lírica, o ensaio, a biografia, a autobiografia, o memorialismo literário, a História, Geografia, tudo isso e muita coisa mais.

Quem começou tudo foi o filósofo Platão, que criou, no ano de 386 (antes de Jesus Cristo, sabemos todos), em Atenas uma escola que duraria novecentos anos. Essa escola tomou o nome de Academia. Eis o caso. Platão tinha sido vendido como escravo pelo rei Dionísio I, de Siracusa, cidade-estado da Sicília. Ele foi libertado por um tal de Aniceres (certamente seu amigo), que pagou o preço do resgate. Para ressarcir a Aniceres, outros amigos de Platão, cotizando-se, levantaram a importância de três mil dracmas; mas Aniceres se recusou a receber o dinheiro. Então, esses amigos utilizaram o dinheiro para comprar uma – digamos assim, em linguagem atual – espécie de chácara, situada em um subúrbio de Atenas. Nessa propriedade existia um jardim dedicado a um herói ateniense, Akademos – aquele que revelou a Castor e Pólux o lugar onde se encontrava a irmã deles, Helena, a linda mulher que Páris arrebatou ao marido e levou para Tróia, o que provocou a guerra que Homero cantou naquele poema, Ilíada, que fundou a poesia épica do Ocidente. Em homenagem a Akademos, deram ao sítio o nome Academia. “Ali fundou Platão” – informa o historiador Will Durant – “a universidade que estava destinada a ser o centro intelectual da Grécia durante novecentos anos”. Importante, este fato: a Academia de Platão – que ele dirigiu por trinta anos, até morrer – era uma universidade. Nela se ministravam cursos de filosofia, ciências, letras. Durou mais do que duraram até agora as modernas e mais antigas universidades européias – fundadas quase todas entre os séculos XII e XIII da nossa era cristã: a de Bolonha, a de Coimbra, a de Paris, a de Oxford, etc. Durante muito tempo aceitei a informação – dada por um guia turístico em Atenas, em março de 1980, na minha primeira viagem à Europa –, de que a Academia de Platão foi a primeira universidade da Europa. Não é verdade. Will Durant esclarece: “Não foi, entretanto, a primeira universidade: a escola pitagórica de Crotona, já em 520, havia proporcionado uma variedade de cursos para uma comunidade escolar; a escola de Isócrates precedeu de oito anos a Academia”. E diz, falando de Isócrates (que foi discípulo de Sócrates, tal como Platão também o fora): “Em 391 abriu a mais bem sucedida de todas as escolas de retórica de Atenas. De todas as partes do mundo grego afluíam moços desejosos de se fazerem discípulos de Isócrates; talvez a variedade de origem e de aspecto desses estudantes auxiliasse o mestre a formar a sua filosofia pan-helênica”. A Academia de Platão foi, portanto, a terceira universidade da Europa. Aristóteles, discípulo de Platão, também fundou – em 334 a. C. – uma escola de retórica e filosofia que pode ser considerada uma espécie de universidade. Portanto, a quarta da Europa. Chamou-se Liceu – nome devido ao acaso, sem relação alguma com a coisa nomeada. Conta Will Durant: “Escolheu para local o mais elegante dos ginásios de Atenas, um grupo de edifícios dedicados a Apolo Liceu (deus dos pastores), cercou-o de sombreados jardins e alamedas cobertas. Pela manhã ensinava matérias adiantadas a estudantes regulares; durante o dia dava preleções a auditório mais popular, provavelmente sobre retórica, poesia, ética e política. Formou ali uma grande biblioteca, um jardim zoológico e um museu de história natural. A escola passou a chamar-se Liceu e a filosofia nela ensinada denominou-se “peripatética”, devido às alamedas cobertas (peripatoi) ao longo das quais Aristóteles costumava passear com seus discípulos enquanto dissertava”. De passagem, assinala Will Durant que houve “forte rivalidade” entre o Liceu, “cujos alunos vinham sobretudo das classes médias, a Academia, que tirava seus membros da classe aristocrática, e a Escola de Isócrates, que tinha a preferência dos gregos das colônias. A rivalidade cessou depois que a Escola de Isócrates se firmou na retórica, a Academia na matemática, na metafísica e na política, e o Liceu na ciência natural”.

Como se vê, o sentido original da palavra academia era este – de escola de ensino superior. As academias da Hélade Antiga muito pouca afinidade ou semelhança tiveram com as academias de letras modernas, destituídas de finalidades precipuamente didáticas ou pedagógicas. A acepção primordial se manteve no Brasil até há pouco tempo. As primeiras escolas superiores instaladas no Brasil, no século XIX, denominavam-se academias: Academia de Direito de São Paulo, Academia de Direito de Olinda, Academia de Medicina, etc. Mas algumas academias propriamente de letras surgiram antes, no século XVIII, no rastro das primeiras aparecidas depois da fundação da Academia Francesa, em 1635, em Paris. Iniciativa do Cardeal Richelieu, que então governava a França, sob o reinado do rei Luís XIV. Richelieu elaborou o estatuto, e fixou o número de acadêmicos – quarenta, que se tornou padrão de quase todas as academias congêneres. Essa origem oficial, governamental, estatal, foi também a de outras academias européias. A primeira academia de Portugal, que parece ter sido a Academia dos Generosos, criada em Lisboa em 1649; passou a chamar-se, em 1696, Academia das Conferências Discretas, e, na sua última fase, Academia Portuguesa. A segunda academia portuguesa, a Academia dos Singulares, surgida em 1653, tinha por emblema uma pirâmide com inscrições de nomes de vários escritores célebres, com a divisa “Solaque non possunt haec monumenta mori”. A Academia de Ciências e Letras de Lisboa – aquela que sobreviveu e se fortaleceu através do tempo e atualmente goza de muito prestígio – foi fundada em 1779. Sua primeira sessão pública realizou-se em 4 de julho de 1780.

As diversas academias de letras do nosso período colonial foram bem efêmeras: Academia Brasileira dos Esquecidos, criada em 1724, na Bahia; Academia dos Felizes, instalada em 1736, no Rio de Janeiro; Academia dos Seletos, fundada no Rio de Janeiro em 1752; Academia Científica do Rio de Janeiro, fundada em 1772 por um médico, José Henriques de Paiva, para estudos médicos, cirúrgicos, higiênicos, farmacêuticos, e também para pesquisas agronômicas e que interessassem ao desenvolvimento da lavoura e fossem uma garantia das culturas contra as pragas que as infestavam. Já após a Independência, surgiu a Academia de Medicina, em 1829, no Rio de Janeiro, composta de três secções; médica, cirúrgica e farmacêutica. Ela publica desde 1831 os seus Anais e teses apresentadas no seu plenário.

A primeira academia de letras que alcançou perdurar no tempo é a Academia Brasileira de Letras, do Rio de Janeiro. Fundaram-na, principalmente, Lúcio de Mendonça e Machado de Assis, em 1896. Foi instalada em 1897. No discurso de instalação da Academia – um modelo de concisão e elegância –, Machado de Assis, eleito presidente, expôs a sua concepção da missão, papel e sentido da Academia: “Não é preciso definir esta instituição. Iniciada por um moço, aceita e completada por moços, a Academia nasce com a alma nova e naturalmente ambiciosa. O vosso desejo é conservar, no meio da federação política, a unidade literária. Tal obra exige não só a compreensão pública, mas ainda e principalmente a vossa constância. A Academia Francesa, pela qual esta se modelou, sobrevive aos acontecimentos de toda a casta, às escolas literárias e às transformações civis. A vossa há de querer ter as mesmas feições de estabilidade e progresso”. Menos de cinco meses depois, em 7 de dezembro de 1897, em novo discurso, na sessão de encerramento do ano, Machado de Assis desenvolveu a sua concepção de Academia; ousadamente, afirmou: “Nascida entre graves cuidados de ordem pública, a Academia Brasileira de Letras tem de ser o que são as associações análogas: uma torre de marfim, onde se acolham espíritos literários, com a única preocupação literária, e de onde, estendendo os olhos para todos os lados, vejam claro e quieto. Homens daqui podem escrever páginas de história, mas a história faz-se lá fora. Há justamente cem anos o maior homem de ação dos nossos tempos, agradecendo a eleição de membro do Instituto de França, respondia que, antes de ser igual aos seus colegas, seria por muito tempo seu discípulo. Não era ainda uma faceirice de grande capitão, posto que esse rapaz de vinte e oito anos meditasse já sair à conquista do mundo. A Academia Brasileira de Letras não pede tanto aos homens públicos deste país; não inculca ser igual nem mestra deles. Contenta-se em fazer na medida de suas forças individuais e coletivas, aquilo que esse mesmo acadêmico de 1797 disse então ser a ocupação mais honrosa e útil dos homens: trabalhar pela extensão das idéias humanas”. Referindo-se aos trabalhos, na Academia, de elaboração de um anuário bibliográfico que serviria de subsídio a um futuro dicionário bibliográfico nacional e à coleta de “elementos do vocabulário crítico dos brasileirismos entrados na língua portuguesa e das diferenças no modo de falar e escrever dos dois povos, como nos obrigamos por um artigo do regimento interno”, o grande Machado, nesse mesmo discurso de fim de ano, declarou mais uma outra missão da Academia: “A Academia, trabalhando pelo conhecimento desses fenômenos buscará ser, com o tempo, a guarda da nossa língua. Caber-lhe-á então defendê-la daquilo que não venha das fontes legítimas – o povo e os escritores – não confundindo a moda, que perece, com o moderno, que vivifica. Guardar não é impor; nenhum de nós tem para si que a Academia decrete fórmulas. E depois para guardar uma língua, é preciso que se guarde também a si mesma, e o melhor dos processos é ainda a composição e a conservação de obras clássicas. A autoridade dos mortos não aflige, e é definitiva. Garret pôs na boca de Camões aquela célebre exortação em que transfere ao “Generoso Amazonas” o legado do casal paterno. Sejamos um braço do Amazonas; guardemos em águas tranqüilas e sadias o que ele acarretar na marcha do tempo”.

O sentimento e os impulsos federativos, fundamentos mas também efeitos da idéia de república, estimularam os Estados, no Brasil, a criar cada qual a sua própria academia. Em meu Estado, Goiás, sucedeu um caso singular. Foi uma mulher, Eurídice Natal, filha de um futuro ministro do Supremo Tribunal Federal, Guimarães Natal, quem fundou, em 1903, na antiga Capital, Goiás, a primeira academia de letras de Goiás, antecessora da atual, fundada em 1939 por um filho dela, Colemar Natal e Silva. Este acontecimento merece ser salientado como excepcional mérito da sociedade goiana: aquela época não concedia, em parte nenhuma do Brasil e do Mundo, tais direitos às mulheres. O pioneirismo goiano se faz mais admirável ainda se se recordar que no plano federal, na Academia Brasileira de Letras, no Rio de Janeiro, as mulheres só vieram a alcançar direito de ingresso mais ou menos setenta anos depois.

De uns vinte anos para hoje, as academias de letras se municipalizaram no Brasil. Nada mais natural. A rigor, a Academia Brasileira de Letras, apesar do âmbito e expressão nacional da sua influência e representatividade, tem sido em alguns aspectos uma academia municipal. O Rio de Janeiro, logo depois da instauração da República, se classificava administrativamente como Município Neutro. Foi no contexto desse Município Neutro que apareceu a Academia Brasileira de Letras. Ela se tornou uma academia digamos nacional, ou federal, em virtude de duas circunstâncias não permanentes. A primeira, a circunstância política de ser o Rio de Janeiro a Capital federal. A segunda, a de que o Rio, por várias razões de ordem histórica e sociológica, era a metrópole para onde afluíam e onde se instalavam e atuavam os principais escritores e intelectuais do País. Hoje em dia, está em curso um acelerado processo de desconcentração do desenvolvimento econômico e cultural no Brasil. Em conseqüência, as instituições culturais de outros Estados, da maioria deles, tendem a se fortalecer cada vez mais como expressões de valores pessoais e culturais tão significativos quanto os que se projetam no Rio de Janeiro. E a Academia Brasileira de Letras vem apresentando uma perigosa tendência para, municipalizando-se de fato, tornar-se uma academia ou carioca ou fluminense.

Talvez se possa dizer que a Academia Municipalista de Letras de Minas Gerais tenha sido pioneira na idéia e nas iniciativas de se criarem academias municipais de letras no Brasil. Não estou informado de quando surgiu, mas sei que tem bem mais de 30 anos. Se não me engano, foi em 1972 que tive a honra de receber de Juscelino Kubitschek – remetido pelo correio – um opúsculo com o seu discurso de posse nessa academia. Ele fora eleito como representante do Município de Diamantina, sua cidade natal. A Academia Municipalista de Letras de Minas Gerais surgiu, presumo, da original idéia de congregar escritores, ou personalidades intelectuais ou artísticas, representativos dos municípios onde nasceram. É bom registrar que Juscelino foi eleito para ela num período em que ele se encontrava proscrito da vida política e social do nosso país. A eleição dele representou uma espécie de sutil desagravo dos seus coestaduanos, a brava e leal gente de Minas, à condição de Juscelino de homem punido, com as mais contundentes injustiças que o transformaram no maior mártir político da história do Brasil, pela ditadura de 1964.

Ao meu ver, a Academia de Letras do Brasil surgiu, já no nome que adotou, já com a sua localização representativa, sugestiva, privilegiada e simbólica, com a funda e essencial vocação de ser uma academia nacional: Uma academia da literatura do povo brasileiro. Assim a vejo. Assim, na minha opinião, deve ser vista e conduzida. Uma academia nacional, de escritores e não de beletristas.

A respeito do patrono da minha cadeira, que é de número 30, devo informar que fui eu quem o escolheu. José Geraldo, quando lhe comuniquei, tempos atrás, que aceitava entrar na Academia, me facultou designar o patrono da minha cadeira. Apontei Érico Veríssimo. Não o digo como reivindicação de glória, embora justa, mas como revelação de um compromisso e de uma intenção. Érico Veríssimo não foi um beletrista, um literato no sentido menor desta palavra. Foi um escritor, na acepção maior e integral do termo. Muito me apraz falar dele, embora ainda sem o conhecimento completo de sua obra. Li alguns dos seus livros, não todos. Sua obra é digna de ser lida integralmente, coisa que comecei a fazer há algumas semanas, lendo e relendo. Ainda antes dos de Érico Veríssimo, tenho lido, de nove meses para hoje, livros de outros autores rio-grandenses. Isso vem me permitindo e autorizando afirmar que, se a literatura brasileira consistisse somente na literatura do Rio Grande do Sul, seria ainda assim uma literatura rica, densa, vasta, forte e imensamente significativa; e que, se a literatura do Rio Grande do sul consistisse somente na literatura produzida por Érico Veríssimo, seria ainda assim uma literatura rica, densa, vasta, forte e imensamente significativa.

Quem é que, sendo leitor de livros, não conhece Érico VeríssimoErro! Indicador não definido.?

Érico Veríssimo nasceu em Cruz Alta, cidade situada na região central e serrana do Rio Grande do Sul, em 1905, e morreu em 1975, em Porto Alegre, quase na véspera de completar 70 anos de vida. Família muito importante no município de Cruz Alta. O avô paterno, o Dr. Franklin, foi um médico (homeopata e prático) muito respeitado e dono de estância grande. e morava em uma casas principais de Cruz Alta, apelidada de Sobrado – tal como a casa dos Cambará no romance O Continente. O avô materno era um estancieiro poderoso que empobreceu e viveu o resto da vida na cidade. O pai, Sebastião Veríssimo, foi farmacêutico durante algum tempo, mas faliu. Era uma personalidade de gaúcho típico, bem falante e muito mulherengo. Por causa disto sua mulher o abandonou, com o apoio dos filhos, principalmente do mais velho, Érico. Sebastião Veríssimo, depois de alguns anos marginalizado em Cruz Alta, mudou-se para São Paulo, onde morreu em estado de muita pobreza, mais ou menos aos cinquenta e dois anos de idade.

Um perfil da personalidade de Érico Veríssimo, composto de informações por ele mesmo fornecidas em suas memórias, mostra um homem que se afirma tímido, “sem o talento da oralidade” (apesar disso pronunciou mais de mil conferências e proferiu numerosos discursos), sempre capaz de vencer o próprio medo, mesmo o mais intenso e dominante, muito fiel aos próprios sentimentos, leal, verdadeiro, coerente. Ele se dizia um mero contador de estórias, como se essa condição o apequenasse como escritor. Só que ele foi um contador de estórias perfeito, impecável, intensamente produtivo.

Érico Veríssimo compôs uma vasta obra literária: romances, contos, estórias para crianças, livros de viagens. Eis uma lista dos seus livros: Fantoches, Clarissa, Caminhos cruzados, Música ao longe, Um lugar ao sol, Saga, As mãos de meu filho, O resto é silêncio, O tempo e o vento (O Continente, O retrato, O Arquipélago), Noite, O senhor embaixador, Incidente em Antares, Vida de Joana d’Arc, Os três porquinhos pobres, aventuras do avião vermelho, Rosamaria no castelo encantado, Aventuras de Tibicuera, Outra vez os três porquinhos, A vida do elefante Basílio, O urso com música na barriga, Viagem à aurora do mundo, Aventuras no mundo da higiene, Gente e bichos, Gato preto em campo de neve, A volta do gato preto, México, história duma viagem, Breve história da literatura brasileira.

Érico Veríssimo foi um grande narrador – contador de estórias. Um dos melhores da sua época. Porém, ele não foi um prosador original e brilhante, principalmente fora das narrativas de ficção. Mesmo no romance O Continente, tecido e atravessado de uma tocante epicidade que o coloca entre os grandes romances universais, a força da narrativa de Érico Veríssimo reside nos personagens e nas situações narradas, na energia reprodutora da verdade da vida e das coisas, e não em uma linguagem reinventada ou na reinvenção da linguagem. Érico escreveu de modo vamos dizer objetivo, despreocupado de originalidade e grandiloqüência, modesto mesmo, quase empenhado em nivelar-se ao leitor comum por meio de uma linguagem o mais clara possível, e frequentemente entremeada de locuções convencionais. Mas as situações por ele criadas são de tal modo humanas, verdadeiras, bem narradas, que o leitor — mesmo o mais exigente — sente, com entusiasmo e comoção, a força dramática e trágica a elas inerentes e dela emanantes. Sem empregar recurso algum de retórica – sem adjetivo e sem advérbio –, a narrativa de Érico Veríssimo consegue ser pungente quando precisa ser pungente e lírica quando deve ser lírica. Devagar e com astúcia, e de um modo fortíssimo, veraz, envolvedor, a narrativa de Érico Veríssimo empolga e conduz o leitor a penetrar devagar mas completamente no mundo criado por ele. E é com um crescente sentimento de interesse e mesmo de amor que o leitor adentra esse mundo — com seus habitantes humanos, seus problemas, sua realidade física, histórica, geográfica, social. E ocorre este fenômeno notável: em Érico Veríssimo até o lugar-comum – essa coisa detestável – se transfaz em ingrediente positivo, uma espécie de pecadilho perdoável ou aceitável cacoete. Com essas características, vou me repetir, ele conseguiu fazer, por exemplo, do romance O Continente, publicado em 1949, o qual reconstitui a saga da formação e evolução histórica do Rio Grande do Sul, desde os meados do século XVII até meados do século XX, talvez o melhor romance da literatura brasileira. O mais bem realizado. O de maior força expressional e comunicativa. O mais verdadeiro, humano e belo. Um romance de grandes personagens criados com o talento de um narrador magistral, inesquecíveis vidas reconstituídas com exata verdade e estupenda força. A história da família Cambará, a história da cidadezinha de Santa Fé, a história da Província do Rio Grande do Sul, a história do Brasil refletida no microcosmo de Santa Fé. Mais até do que nos outros romances, em O Continente a linguagem de Érico Veríssimo se apresenta despretensiosa, simples, de frases curtas, sem medo do lugar-comum e de repetições, sem rebuscamentos de expressividade e de estilo, dotada de extraordinária força de expressão, advinda de um forte poder de envolvimento, de uma honestidade simples, do seu dizer verdadeiro, da digna poesia que lhe emana das situações narradas.

A propósito desse romance, deve-se registrar um fato importante na evolução do escritor e do homem Érico Veríssimo. Confessa ele nas suas memórias que, até atinar com a matéria de O Continente, permaneceu um autor estritamente urbano. Foi devagar e à custa de vários auto-enganos que descobriu o povo do Rio Grande do Sul, a realidade gaúcha, a verdade e a força da gente da sua terra. Até então ele subestimava a sua gente, enquanto matéria literária. Descobrindo-a, ele se encontrou a si mesmo. Nasceu daí a trilogia romanesca que se abre com O Continente.

Além de grande escritor, Érico foi também um homem de ótimo caráter. Na minha opinião o escritor, por causa da sua elevada responsabilidade social, tem mais obrigação do que qualquer outra pessoa de possuir bom e positivo caráter e de zelar pela sua integridade e coerência. Érico Veríssimo foi um homem íntegro e coerente. Sempre proclamou e defendeu o primado da dignidade humana, das liberdades fundamentais, do dever de se lutar em favor da justiça e da igualdade entre os homens, do dever sempre se dizer, com honestidade e simplicidade, a verdade. Não era comunista, mas, recusando a injustiça e a desigualdade, rejeitava o que há de negativo e mau no capitalismo. Nunca se curvou passivamente diante do autoritarismo das ditaduras.

Salve Érico Veríssimo! Um ótimo e saudável modelo de escritor e de homem. Sobre ele posso fazer minhas estas palavras dos seus Editores, na Nota com que fizeram preceder o segundo volume do seu livro de memórias, Solo de clarineta: “...aquele que, ao longo de sua existência como cidadão e escritor, tornou-se um dos paradigmas da vida intelectual brasileira”.

Finalmente, devo expressar meus agradecimentos a todos os acadêmicos desta valorosa Casa que me fizeram seu colega perpétuo; a todas as pessoas que, comparecendo a esta solenidade, me honraram, valorizaram, prestigiaram, apoiaram; e muito especial, particular e comovidamente, ao escritor Danilo Gomes, que, com a força do seu talento e da sua militante generosidade, me estendeu a benfazeja mão da sua veneranda cidade de Mariana para me receber neste templo de cultura. Mais uma ação protetora com que me envolve a boa terra de Minas Gerais, essa inesgotável matriz de talentosa gente solidária.

Tenho dito.

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